Repensar o direito a partir das artes e, sobretudo, da literatura é a proposta desta coluna que se inaugura. Os pontos comuns entre os saberes são fartos, pois partem “da vida como ela é”, já que lidam com as relações humanas e a dubiedade da alma. Portanto, apesar de áreas distintas do conhecimento, ambas trabalham sob a ótica da interpretação e da linguagem, centrando-se na palavra.
Neste início de ano, completam-se 64 anos da morte de Albert Camus, prêmio Nobel de literatura em 1957, cujos textos remetem à condição humana. Daí que, dentre as infindáveis opções, inauguramos esta coluna com a obra “A Peste”, sobre a qual sempre haverá o que ser dito e redito.
A história, escrita em 1947, centra-se numa cidade ao norte da Argélia, em que, de repente, ratos mortos começam a proliferar por toda parte, chamando a atenção do médico Bernard Rieux. Concomitantemente, as pessoas começam a ter febre e a morrer, o que gera pânico. A fim de tentar cessar o “estado de praga”, os muros da cidade são fechados e inicia-se uma espécie de quarentena.
Diante de tantas mortes, os discursos se opõem. O Padre, que depois vem a morrer, afirma tratar-se de um castigo divino. O Prefeito nega os fatos. O jornalista, Rambert, em seu individualismo, tenta fugir. O personagem Cottard se apoia na pandemia para legitimar suas contravenções. Estabelece-se um dilema ético em todos os atores: tentar escapar da epidemia, esperar passivamente que ela termine ou combatê-la?
Após cerca de 10 meses, as mortes diminuem e os ratos desaparecem, principalmente em razão do empenho e da decência do médico Bernard Rieux , que anunciou a maldade alastrada e arregimentou as brigadas sanitárias, ao lado de Jean Tarrou, um viajante com aversão a qualquer forma de morte. Ao criticar a passividade com que os fatos eram tratados por parte substancial da sociedade, Tarrou diz: “Eu pensava estar lutando contra a peste. Descobri que havia, indiretamente, apoiado a morte de milhares de homens, que tinha até mesmo causado suas mortes, ao aprovar as ações e princípios que inevitavelmente levaram a elas.”
A mensagem de Camus é uma clara crítica às formas de opressão, às ditaduras, à passividade em momentos que exigem resistência. Em que pese fazer analogia ao nazismo e à ocupação militar alemã - já que os fatos se passam nos anos 40, no norte da Argélia, em alusão à 2ª guerra mundial, quando Paris se deparou com os horrores do nazismo - há uma clara ode à nossa responsabilidade enquanto cidadãos. A obra é, além de uma manifestação de esperança, um grito à liberdade, à democracia, à necessidade de lutar contra os absurdos, em qualquer de suas faces.
Ao final, Camus nos lembra que o bacilo da peste não morre, mas permanece na sociedade em diversas formas e “espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papeis, nos lenços”, “para desgraça e ensinamento dos homens”.
Neste um ano dos ataques aos Poderes constituídos, é importante dizer com todas as letras que “nada do que aconteceu é normal”. Os ataques aos prédios do Judiciário, Legislativo e Executivo evidenciaram uma tentativa de golpe contra a democracia, sem a qual não existe Estado de Direito e muito menos garantia das liberdades. Portanto, para que ações semelhantes não se repitam, é essencial a responsabilização dos envolvidos, claro que com respeito às regras processuais e observância aos direitos fundamentais.
Sabedores de que o vírus não morre, é importante lembrar sempre da sentença bíblica “vigiai e orai” (Marcos 14:38), que nos conduz à certeza de que o preço da liberdade é a eterna vigilância.
Ops. A primeira coluna é sempre inesquecível. Se o verbo é a origem de todas as coisas (João), escrever sobre a relação direito e literatura é um deleite para um mero aprendiz. Desejo ao leitor que este espaço seja para ele também de diversão e, quanto às críticas, sirvo-me desde já das advertências de Machado de Assis, quando da publicação de “Papéis Avulsos”: Deste modo, venha donde vier o reproche, espero que daí mesmo virá a absolvição.
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