Quase sete da manhã: o Sol nasce no sábado, 7 de outubro de 2023, na região de Re’im, perto da fronteira de Israel com a Faixa de Gaza, onde jovens curtem uma rave que atravessou a madrugada no deserto. Com a música alta, flashes no céu são confundidos com fogos de artifício. Eram mísseis.
“Eu estava dançando sozinho na frente do palco quando comecei a ouvir ‘pa, pa, pa’, bem alto, como se fossem fogos de artifício. Olhei para cima e vi uma quantidade surreal de mísseis. O DJ parou e disse no microfone: ‘código vermelho, código vermelho’”, lembra Rafael Zimerman, brasileiro de 28 anos que sobreviveu ao ataque.
Local onde acontecia a rave:
Na série de ataques sem precedentes em solo israelense, o Hamas deixou 1.200 mortos. A resposta foi imediata: o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu prometeu que
Ataques aéreos e a invasão por terra que se seguiu promoveram uma caçada a combatentes do Hamas, mas o massacre de civis e a destruição de casas e escolas não podem ser tratados como dano colateral. Um ano depois, Israel deixou 42 mil mortos, 98 mil feridos e um país colapsado, sem água, energia ou comida.
Parte da população foi empurrada pelo Exército de Israel das cidades de Gaza para o Sul, em Rafah, de onde partiram milhares de refugiados para o Egito. É o caso do fotógrafo palestino Abed Zagout, que atravessou a fronteira com a mulher e os seis filhos. Ele não conseguiu levar toda a família. “Israel matou minha irmã e meus sobrinhos, crianças inocentes”, desabafa.
A Itatiaia conversou com sobreviventes em Gaza e Israel. E também mostra o drama de uma brasileira que vivenciou os ataques ao Líbano, país que está sendo bombardeado neste momento por Israel na caçada a membros de outro grupo radical, o Hezbollah.
‘Vi meu amigo agonizando de dor. Era questão de tempo para acontecer comigo’, diz brasileiro que estava em rave
O brasileiro Rafael Zimerman, de 28 anos, foi um dos sobreviventes ao ataque do Hamas em Israel
Em minutos, milhares de jovens que curtiam a rave foram lançados do eco da música para o horror. O Hamas, grupo terrorista que controla a Faixa de Gaza desde 2007, promovia uma invasão inédita a Israel naquele 7 de outubro: por terra.
Acreditando que estavam seguros, os brasileiros Rafael Zimerman, Rafaela Treistman e Ranani Glazer tiraram uma foto dentro do bunker
Rafael Zimerman pensou que o famoso sistema de defesa anti-aéreo de Israel, o
“Não tinha nem porta e não era subterrâneo, era uma casinha atrás de um ponto de ônibus. Fomos os primeiros a entrar e me sentia seguro, mas começou a chegar gente e onde cabia 15 pessoas tinha 40”, lembra.
Seria um bunker seguro contra mísseis, mas eles não esperavam que terroristas metralhariam e jogariam granadas lá dentro.
“Eu estava encostado na parede e comecei a sentir tiros. Eles não atravessavam o bunker, mas eu sentia o impacto nas minhas costas. Aí ouço um barulho: ‘piiii’. Eles jogaram uma granada. Depois começou uma troca de tiros, virou um caos lá dentro”.
Bunker onde os brasileiros se esconderam durante o ataque do Hamas
Dos 40, apenas nove saíram vivos dali. O brasileiro
O brasileiro desmaiou com o que parece ter sido uma granada de gás e quando despertou se viu preso a vários corpos. Por medo, se fingiu de morto até ser resgatado por outro frequentador da rave. Mas uma cena ainda pior o aguardava fora do bunker.
“Tinha uma fogueira bem na porta. Uma fogueira com uma pilha de corpos. Eles pegaram os jovens ainda vivos, fizeram uma pilha e colocaram fogo”, recorda-se.
Naquele dia, 364 pessoas que estavam na festa morreram baleadas, espancadas ou queimadas vivas. Outras 251 foram arrastadas e sequestradas para dentro da Faixa de Gaza, incluindo idosos e crianças. O território palestino cercado por Israel tem 1,7 milhão de habitantes - que dependem de ajuda humanitária para sobreviver. Um ano depois, 97 delas permanecem em Gaza e 33 foram declaradas mortas pelo Exército de Israel.
Rafael estava em Israel havia cinco meses. Neto de judeus, largou a carreira em uma empresa de finanças em São Paulo pensando em segurança e qualidade de vida em Israel. O jovem diz não sentir raiva dos homens que quase o mataram, mas defende os ataques israelenses.
‘Israel matou minha irmã e meus sobrinhos. Não há palestino que não esteja com raiva’
O fotógrafo freelancer Abed Zagout, de 39 anos, viu a própria cidade ser arrasada pelos bombardeios. Nascido e criado em Khan Yunis, no Sul da Faixa de Gaza, ele, a esposa e os cinco filhos, com idades entre dois meses e 13 anos, decidiram se abrigar no Hospital Nasser assim que os ataques israelenses começaram.
Hospital Nasser:
O exército israelense avisou que ia atacar a área onde fica o hospital e obrigou os civis a deixarem a região. O fotógrafo, então, fugiu com a família até Rafah, na fronteira com o Egito. Três meses depois, sem trabalho e com dificuldade até para conseguir comida, conseguiram atravessar a fronteira da Faixa de Gaza e se refugiar no país vizinho.
A irmã de Zagout não teve a mesma chance: 12 pessoas, incluindo o marido, filhos e netos foram mortos por um míssil israelense dentro do prédio onde moravam no centro de Deir al-Balah, em Gaza.
Hiyam Zaqout tinha 55 anos e era casada com o cirurgião Hassan Abdullah Hamdan, de 64. Eles foram atingidos ao lado dos filhos Muhammad, 19 e Ghada, de 25. Os netos Malek e Hassan e a esposa, Aya, de 23, e os dois filhos de Ghada, Hanan e Rima Al-Ghamri, e Muhammad, de 20, morreram na hora. Um padeiro que passava na calçada, Hossam Salama Shehta, também foi morto.
Abed Zagout trabalhava como fotógrafo freelancer na Faixa de Gaza
Zagout, que também perdeu dezenas de colegas de trabalho e inúmeros vizinhos, testemunha o horror com seu instrumento de trabalho, a câmera. A galeria reúne corpos espalhados por escombros e crianças feridas em hospitais, mas também garotos brincando com o pouco que sobrou e jovens buscando abrigo contra o frio. Ele faz questão de documentar o massacre israelense na palestina para alertar o mundo. "É um sentimento de impotência e opressão”, descreve. “Israel matou mais de 170 colegas jornalistas. Minha irmã e toda a sua família foi morta. Israel matou meus sobrinhos, crianças inocentes. Eu os vejo cair um por um”.
“Ela era a irmã amada e favorita do meu coração. Sua morte me chocou. Eu gostaria de poder chorar por minha irmã Hiyam e sua família. Meu peito quer explodir, mas não consigo desabafar minha raiva, dor e opressão. Estou perdido”
Criança come comida perto de sua tenda em meio aos ataques israelenses que continuam - Khan Yunis, Gaza, 19 de novembro de 2023
Porta-voz do Crescente Vermelho, Nebal Farsakh explica à Itatiaia que a organização humanitária - que atua no resgate de feridos em Gaza - sofre para trabalhar em meio aos ataques. Em um ano, 34 integrantes do Crescente Vermelho foram mortos por Israel, sendo 19 mortos durante o expediente.
“O sistema de saúde foi dizimado. De 36 hospitais em Gaza, apenas 16 operação e de forma parcial. A falta de energia e de equipamentos médicos tornam impossíveis os cuidados com pacientes de alto risco. Postos médicos e hospitais de campanha tentam amenizar o problema, mas milhares de pessoas precisam de um nível de cuidado que não está disponível em Gaza”, lamenta.
Farsakh descreve o cenário de completo “A falta de combustível prejudica o trabalho de ambulâncias e a conservação de vacinas e equipamentos de laboratório. A destruição dos sistemas de água e saneamento, combinado com a população abrigada em locais inadequados, ajuda a espalhar doenças. O acesso diário a água potável é um desafio para 85% dos moradores”, alerta o porta-voz.
Zagout descreve uma Faixa de Gaza massacrada um ano depois do início da guerra. “Não há palestino que não esteja com raiva. Na verdade, não há pessoa com consciência viva que não esteja com raiva. As pessoas lá estão muito cansadas. Os preços estão muito altos, as doenças são generalizadas, não há remédio, as tendas [residências improvisadas pelos refugiados] foram destruídas”.
“Mas ainda espero voltar a Gaza em breve”, afirma. A terra natal nunca é esquecida.
Um ano depois: Líbano é o novo alvo israelense
Ataques ao Líbano motivaram entrada do Irã na guerra
Depois da invasão em Gaza, Israel passou a caçar líderes de aliados do Hamas, o grupo terrorista Hezbollah - milícia xiita apoiada pelo Irã e com ampla influência política no Líbano. O confronto se intensificou depois de
Após os ataques, o Hezbollah prometeu combater Israel “até o fim da agressão em Gaza”. Em 28 de setembro, os bombardeios israelenses mataram
Além de bombardear o Líbano - inclusive a capital Beirute - Israel iniciou a invasão por terra. Em retaliação, o Irã enviou 180 mísseis em direção a Israel, mas a maior parte foi interceptada pelo sistema de defesa aérea do país. O Hamas também reivindicou um novo ataque terrestre em Israel. Dois terroristas abriram fogo em uma estação de trem em Tel Aviv e mataram sete pessoas.
A cearense Karla Cardoso, de 42 anos, e os filhos, de 6 e 12, tentam deixar o Líbano em segurança
Em meio aos bombardeios no Líbano, uma família brasileira se viu desesperada para sair do país. Karla Cardoso, de 42 anos, morava há pouco mais de um ano em Beirute com os dois filhos, de 6 e 2 anos, no país. Nascida em Fortaleza (CE), Karla vivia em Angola com a família e se mudou para o país do marido em busca de uma educação melhor para os filhos.
Mas, o sonho de morar no Líbano se transformou em medo e apreensão constante. Karla conta que o bairro ao lado de onde mora foi bombardeado e ela precisou sair de casa com os filhos e a família do marido, seus sogros e cunhados.
Área próxima a casa da brasileira em Beirute foi bombardeada por Israel
“Sexta-feira retrasada escutei de longe 10 explosões. Matou muita gente porque um dos prédios atingidos era uma creche. Muitas crianças e mulheres morreram. Aí eu já fiquei assustada”, lembra.
Líbano faz fronteira ao norte de Israel, enquanto a Faixa de Gaza ocupa porção a sudoeste
Depois do episódio, a família fugiu para a casa de um parente em Bchamoun, cidade montanhosa perto de Beirute. Lá, o barulho dos bombardeios é menor, o que favorece o filho caçula de Karla, que tem autismo. A dona de casa brasileira se inscreveu com os filhos na lista de
‘Israel e Hamas precisam mais do conflito do que da paz para sobreviver politicamente’, diz professor
Em apenas um ano, a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas já deixou quase 50 mil mortos, incluindo as vítimas dos ataques no Líbano. O professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UNB), Antônio Jorge Ramalho, afirma que a guerra é sem precedentes na região e pode escalar, se tornando ainda maior.
Para ele, a violência empregada tanto pelo Hamas, quanto por Israel só afasta um possível acordo de paz.
Ramalho considera a reação de Israel desproporcional e igualmente “cruel, covarde e indefensável”.
“A verdade é que o atual governo de Israel aposta na radicalização com o mesmo empenho que o Hamas. Hoje ambos precisam mais do conflito do que da paz para sobreviver politicamente. Infelizmente, dezenas de milhares de pessoas pagam com suas vidas por essa disputa”, diz.
professor explica que a Faixa de Gaza é um território propenso a passar por episódios de violência
O professor explica que a Faixa de Gaza é um território marcado por guerras violentas há milênios. “Infelizmente, sua posição geográfica é estratégica e continuará a expor a população local a violências inomináveis. Agora, a população civil está sendo dizimada. Os números apontam para mais de 42 mil mortos, a maioria mulheres e crianças inocentes. Estima-se que mais estejam sob os escombros ou tenham desaparecido”, diz.
Para Ramalho, Israel está alimentando sentimentos de injustiça, revolta e ressentimento, o que fará que o conflito se perpetue. O professor explica que o que o país faz é tecnicamente um crime de guerra e contra a humanidade, mas não pode ser descrito como genocídio.
“As acusações de genocídio e limpeza étnica são questionáveis, uma vez que os bombardeios são indiscriminados, matando todos os seres vivos ali presentes, e não apenas seres humanos de uma etnia específica”, compara.
O que podemos esperar daqui para frente?
Ao analisar o cenário, o professor enfatiza que há possibilidade do conflito crescer e que não há horizonte para que a violência, de ambos os lados, tenha um fim na região.