A data, 20 de dezembro de 1992.
Domingo.
Peguei o café e meu exemplar da Folha de S. Paulo.
Fui a coluna de Otto Lara Resende. Nascido em São João del-Rei e naquele momento com 70 anos, ele já aos 18 trabalhava como jornalista em O Diário, de Belo Horizonte, antes de editar o suplemento literário do Diário de Minas.
Depois, Otto formou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e criou com os intelectuais e amigos de toda a vida Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino o grupo que ele mesmo batizou de “os quatro mineiros de um íntimo apocalipse”.
Mudou-se para o Rio de Janeiro e lá trabalhou no Diário de Notícias, no Diário Carioca, Correio da Manhã, Última Hora, revista Manchete, Jornal do Brasil (todas publicações desaparecidas entre os anos 1950 e 2000), além de jornal O Globo e TV Globo, onde chegou a diretor.
Mas voltando a coluna de Otto na Folha de S. Paulo, publicada sempre na nobre página 2, importante dizer que era um espaço instigante onde se podia encontrar de tudo. Num dia, a visão cética acerca da proposta de mais um pacto político feita pelo comandante da República das Alagoas, o então presidente Fernando Collor de Mello. Em outro, o comentário sobre a má fase do futebol brasileiro. Em mais outro, divertidos “fiapos de reminiscências”, como definia momentos de sua própria trajetória.
Naquele 20 de dezembro de 1992, o texto de Otto tinha vinte e poucas linhas de uma sensível, tocante e melancólica reflexão.
Falava de uma tal Cristina. “Magrinha”, estudante de escola pública nos anos 1940 no Rio de Janeiro. Comunicativa sempre, de todos amiga. Balconista, depois manicure de farta clientela. Deu-lhe na “sapituca”, foi morar em Los Angeles. Voltou ao Rio, refez laços de amizade. Decidiu morar na Suíça. Casar, nunca casou. Com 40 anos, de novo no Rio, agora massagista. “Pioneira, exaltava a ginástica. Fisioterapeuta, ou quase, com noções de anatomia”.
Nos seus últimos tempos, aparecia na casa de Otto cedinho, ele lendo os jornais. Nunca lhe perguntou sobre Los Angeles.
“Não me perdoo. A familiaridade quase que cega a presença. E a gente adia a palavra de simpatia. Que de sua parte nunca faltou. Deve ser uma cãibra dessa nossa sociedade escravagista”.
Sumiu oito dias, apareceu morta.
“Cristina, cadê você? Seu silencia me desafia e me dói. Em vão indago: Cristina, quem é você?”
Texto lido, compartilho a melancolia do autor. Por essa e por outras Cristinas, contextos os mais diversos.
Localizo o telefone de Otto no Rio. A filha atende. Pergunto por ele, explico que não o conheço. Trata-se de leitor anônimo, querendo apenas dizer “gostei muito”. Informa que acaba de ser submetido a uma cirurgia. Agora, convalesce. Atenciosa, fornece o telefone do hospital e do apartamento onde o pai está. Nova ligação, atende a esposa, igualmente simpática. Explico novamente. Diz que o marido não pode atender, mas promete contar que o texto sensibilizou de forma especial. E acrescenta que ele ficará contente de ouvir isso.
Agradeço e desligo, com a sensação da tietagem cumprida.
Otto não saiu do hospital. Morreu seis dias depois.
A tentativa de transmitir a mensagem do leitor anônimo me serviu de consolo. Afinal, eu tentara fazer o que ele não fizera com Cristina.
Reconfortante essa sensação de não adiar a palavra de simpatia.