Trabalhando em silêncio durante todo o ano, os algoritmos me acompanharam atentamente, rastreando meus gostos e movimentos e oferecendo curadorias e sugestões.
Neste dezembro, como que reproduzindo procedimentos do ambiente corporativo, eles prestaram conta de suas atividades.
Alocados no Spotify, eles apresentaram detalhada contabilidade acerca de minhas preferências musicais nos últimos doze meses. Apesar de uma grande variedade de intérpretes e bandas sintonizadas, fui informado de que o mais ouvido foi Chico Buarque de Hollanda (que ao lado de Caetano Veloso e Gilberto Gil compõem a nossa “Santíssima Trindade” musical, segundo feliz definição do professor, músico, compositor e ensaista José Miguel Wisnick).
Já no LinkedIn, os metódicos algoritmos destacaram minha ativa participação por meio da quantificação de artigos, postagens e interações produzidos, bem como apontaram o número exato de novos seguidores que conquistei no período. Além disso, gentilmente me cumprimentaram pelo nível de atividade e protagonismo na plataforma.
No YouTube, os competentes algoritmos se ocuparam de me ofertar de forma consistente opções de vídeos focados nos temas geopolíticos, econômicos e de negócios, além daqueles que mostram as tendências do setor da aviação, assuntos de meu especial interesse naquela rede social.
Já os algoritmos que operam no âmbito do meu i-Phone me surpreenderam várias vezes ao longo de 2025 com a montagem de retrospectivas temáticas bem-organizadas baseadas em imagens arquivadas no aparelho, sempre bem embaladas e acompanhadas de pertinentes trilhas sonoras.
Em décadas anteriores tinham especial relevância as tradicionais “retrospectivas do ano” das emissoras de TV para nos fazer lembrar dos “fatos mais marcantes” de cada calendário gregoriano. Tais retrospectivas contribuíam para a construção de um quadro mais amplo, onde também estavam inseridas nossas conquistas e frustrações pessoais do período.
E era esse quadro amplo de variáveis tanto externas como individuais que nos ajudava a concluir um balanço final e exclamar: “Que ano, esse que passou!”. A expressão poderia significar tanto uma celebração resultante da predominância de fatos positivos entre janeiro a dezembro como, bem ao contrário, um lamento pelo viés de baixa e o acúmulo de tropeços.
Há comentários frequentes usados para se carimbar cada doze meses e cujo teor varia de acordo com a ótica de quem os exprime. Podem ir do garboso “Não tenho do que me queixar” dos satisfeitos pela colheira do ano, ao cinzento “Graças a Deus que acabou” dos que se sentem frustrados e só querem virar a página.
Mas, para além das análises e balanços objetivos, existe a poesia e seu significado imensurável.
Em seu poema “Receita de Ano Novo”, o insuperável Carlos Drummond de Andrade é cirúrgico ao lembrar que cabe a cada um de nós abrir novos caminhos para o próprio destino. Diz ele:
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
(...)
Você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Algoritmos acompanham cada passo dado no dia a dia e produzem retratos fiéis de nossos hábitos. Mas a alma profunda de cada ano novo temporal ou figurado que habita em nós é intocável e tem vida própria. Representa uma ferramenta sempre pronta a entrar em campo e virar o jogo para melhor.
Mais dia ou menos dia.
Ou, como já cantou em “Futuros Amantes” o número um na minha lista do Spotify:
“Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar”.