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Quando a água sumiu do Parque Municipal: a ponte que ficou seca e o córrego que virou esgoto

Conheça origem da ponte que não passa por cima de nenhum curso d'água no Parque Municipal

Belo Horizonte nasceu em desacordo com seus rios. Ao contrário das cidades que cresceram organicamente ao redor de cursos d’água, a capital mineira foi desenhada sobre eles, como se pudessem ser apagados do mapa com uma simples régua ou até transformados em reta. Um exemplo eloquente dessa tensão é o córrego Acaba Mundo — e a ponte que um dia o cruzou, no coração do Parque Municipal.

O Acaba Mundo brotava na Serra do Curral e serpenteava pelo bairro Funcionários, até desaguar no Ribeirão Arrudas, atravessando o Parque Municipal. Quando a cidade foi fundada em 1897, esse córrego ainda corria livre, a céu aberto, compondo inclusive a paisagem romântica do novo parque urbano e sendo visto na Avenida Afonso Pena. Sua água alimentava uma pequena represa, uma cascata cenográfica e até uma usina elétrica que iluminava a área verde — uma inovação para a época.

Foi nesse cenário que se construiu, por volta da década de 1910, uma ponte sobre o leito do córrego. Parte do conjunto paisagístico do parque, ela se integrava à arquitetura do lugar como elemento funcional e estético. Décadas depois, sem água sob seus pés, ganharia o nome de “Ponte Seca” — uma ironia urbana.

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A mudança começou a se desenhar ainda nos primeiros anos do século XX. O Acaba Mundo era visto como obstáculo ao traçado geométrico da cidade, além de vetor de enchentes, erosões e doenças. Em 1900, o prefeito Bernardo Monteiro já relatava a urgência de canalizar seu curso. A obra, no entanto, só ganhou tração nas décadas seguintes.

Durante as gestões de Flávio Fernandes dos Santos (1924–1926) e de Christiano Machado (1926–1929), o córrego foi completamente retilinizado, desviado e depois enterrado em galerias subterrâneas. O leito natural foi aterrado; e vias como a rua Professor Moraes e a avenida Afonso Pena serviram para encobri-lo. A cidade ganhava terreno, saneamento e mobilidade — e perdia um de seus rios.

A canalização do Acaba Mundo foi celebrada como símbolo de modernidade. Ao lado da retificação do Arrudas, consolidava o modelo de “cidade sobre os rios”, onde a água não se vê, apenas se sente — quando transborda. O que era curso d’água virou escoadouro de tempestades e, por décadas, dejetos domésticos.

A Ponte Seca permanece no Parque Municipal, como testemunha muda de um tempo em que havia um riacho ali. Ela não conduz mais pedestres sobre a água, mas sobre memórias urbanas. Lembra que um dia Belo Horizonte teve córregos visíveis no centro. E nos convida, quem sabe, a repensar a cidade para que seus rios voltem a fazer parte da paisagem — em vez de serem varridos para debaixo dela.

Gabriel Sousa Marques de Azevedo é advogado, empresário, jornalista, professor, publicitário, pós-graduado em competitividade global pela Georgetown University e Mestre em Cidades pela London School Of Economics.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.