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Ação contra Google nos EUA pode mudar rumos da internet

Caso vai julgar se empresa de tecnologia deve ser responsável quando seu algoritmo recomenda conteúdo nocivo

Google aponta artigo de lei americana para se defender de responsabilização por conteúdo de usuários

Aos 23 anos de idade, Nohemi Gonzalez estudava design na Universidade Estadual da Califórnia em Long Beach quando se mudou para Paris para fazer um intercâmbio de um semestre na Escola de Design Strate, em Sèvres. Em 13 de novembro de 2015, ela foi jantar com amigos no bistrô La Belle Equipe.

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Às 21h38 daquela noite, homens armados chegaram ao local e atiraram indistintamente em quem estava no estabelecimento. Nohemi foi uma das 19 vítimas fatais no restaurante — entre as 130 mortas pelos terroristas em diferentes localidades. O Estado Islâmico assumiu a autoria dos ataques.

Algum tempo depois, os familiares de Nohemi foram procurados pela ONG Shurat HaDin (que, em hebraico, significa “letra da lei”), especializada em processar companhias que ajudam terroristas. Eles se ofereceram para acionar o YouTube na Justiça em relação à morte de Nohemi.

A ação, iniciada em 2017, argumenta que a plataforma de vídeos, que pertence ao Google, infringiu a lei antiterrorismo americana ao promover vídeos de propaganda do Estado Islâmico em suas recomendações. As políticas do YouTube proíbem conteúdo terrorista, mas é comum que os algoritmos percam novos vídeos.

Os tribunais inferiores ficaram ao lado do Google e a família apelou. Agora, a Suprema Corte vai ouvir o caso e sua decisão pode ter implicações importantes tanto para a internet quanto para as corporações que a dominam. O Google argumenta que empresas de internet são protegidas de responsabilidade por conteúdo publicado por seus usuários pela Seção 230.

Defensores da norma apontam que ela é vital para manter a internet livre e aberta, para que os usuários publiquem o que quiserem livremente enquanto fiscalizam as plataformas como acharem melhor e evitam ser vítimas de spam ou assédio. Já os críticos da regra apontam que ela permite que as empresas de tecnologia se esquivem de responsabilidade.

Para Halimah DeLaine Prado, conselheira geral do Google, a decisão “pode alterar radicalmente a forma como os americanos usam a internet”. Se a Seção 230 for mudada, o uso de algoritmos de recomendação vai ser mais difícil — de músicas no Spotify a itens em plataformas de e-commerce.

De acordo com os advogados da família de Nohemi, ao recomendar vídeo do Estado Islâmico, o YouTube ultrapassa os limites do que está protegido pela Seção 230. Parte da Lei de Decência de Comunicações, de 1996, a Seção 230 é criticada como desatualizada, já que foi escrita antes de grande parte do mundo se tornar dependente da internet.

Para eles, as maiores e mais lucrativas empresas do mundo não devem recomendar conteúdo terrorista, bem como devem ser responsabilizados por isso quando o fizerem. “Provavelmente, a Seção 230 fazia sentido quando foi escrita”, diz Nitsana Darshan-Leitner, presidente e fundadora da Shurat HaDin. “25 anos depois, as empresas têm algoritmos e ferramentas, e usam conteúdo para seu modelo de negócios. É o momento de reconsiderá-la.”

Por quase três décadas, a Seção 230 foi usada para proteger empresas de internet — o que permitiu que plataformas como Facebook e YouTube se tornassem as gigantes culturais e comerciais que são hoje. Empresas de tecnologia e organizações que defendem a liberdade na internet afirmam que cortar a proteção oferecida pela Seção 230 pode causar um efeito quase apocalíptico na internet.

Julgamento está em andamento

Na terça-feira (21), a Suprema Corte ouviu argumentos orais do caso em uma sessão de quase três horas. A Shurat HaDin, que representa a família Gonzalez, afirma que, ao recomendar conteúdo relacionado ao Estado Islâmico, o YouTube agiu como plataforma de recrutamento para o grupo — algo que contraria as leis americanas.

Lisa Blatt, do Google, informa que a Seção 230 protege a companhia de responsabilidade legal por vídeos de terceiros recomendados por seu algoritmo e que essa imunidade é essencial para que as empresas de tecnologia ofereçam conteúdo útil e seguro aos usuários. Eric Schnapper, advogado dos Gonzalez, argumenta que a aplicação da Seção 230 a recomendações de algoritmo incentiva a promoção de conteúdo danoso e pede que a corte restrinja essas proteções.

Durante a exposição, os juízes ficaram confusos sobre o caso e expressaram a preocupação de expor as empresas a ações judiciais sobre como lidam com o conteúdo do usuário. Mesmo assim, procuraram saber se deve haver distinção legal entre hospedagem e amplificação do conteúdo do usuário quando se trata de avaliar a responsabilidade. Além disso, há o questionamento sobre se a disputa deve ser deixada para o Congresso.

O caso da família Gonzalez é apenas um de vários semelhantes pendentes na Suprema Corte americana. Isso deve permitir que os juízes abordem definitivamente se e como a regulamentação da internet deve ser alterada.

No Brasil, existe preocupação com a disseminação de notícias falsas por essas plataformas. Vale lembrar, por exemplo, que os atos de vandalismo em Brasília foram organizados pelas redes sociais. Nesta quarta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviou uma carta para ser lida em uma conferência da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O documento defende que as plataformas digitais garantam o fortalecimento dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito, “em vez de enfraquecê-los”.

Paralelamente, o governo tem intensificado o debate interno sobre o papel das redes sociais na disseminação de fake news. O ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino já desenvolve um conjunto de projetos a serem enviados ao Congresso para frear a desinformação e responsabilizar as plataformas digitais pelo conteúdo que abrigam — o material ficou conhecido como “pacote da democracia”.