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8 de março | Brasileira caça e desmascara golpistas

Alvos são criminosos que usam perfis falsos para seduzir e extorquir vítimas

Glauce Lima começou a investigar crimes digitais depois que uma amiga foi vítima

Contatos a distância não são uma novidade da era da tecnologia. Eles existem há muito tempo, mas com a internet esse tipo de interação ganhou mais possibilidades. Nesse cenário, um golpe já antigo foi remodelado: é a fraude do amor, em que as vítimas são abordadas em redes sociais ou sites de relacionamento e se envolvem com criminosos.

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O roteiro inclui um parceiro perfeito e uma relação virtual que avança rapidamente. A vítima é procurada por um golpista muito convincente, se apaixona por ele e passa a enviar dinheiro mediante pedidos absurdos, mas que, para ela, parecem justificados. Até perceber que foi enganada, pode ter um prejuízo financeiro considerável. Aí vem a vergonha: ela muitas vezes prefere não informar a polícia para não se expor nem ser submetida a julgamentos.

Em geral, as mulheres são mais propensas a buscar ajuda. Isso porque conseguem conversar com amigas e receber orientação. Isso não quer dizer, entretanto, que homens não são afetados: só que eles se calam para não demonstrar que foram vítimas de fraude e porque muitas vezes são casados. As estatísticas atuais, então, estão provavelmente distorcidas.

Depois de ver uma amiga passar por uma situação como essa, em 2011, Glauce Lima decidiu investigar a fraude. “Eu não conhecia esse tipo de golpe e comecei a pesquisar. Encontrei grupos americanos com muito material sobre o crime. Lá, descobri scammers e grupos de scammers”, conta.

Como Glauce atua

Após a ocorrência com a amiga, Glauce chegou a montar o perfil de um nigeriano e entrar em grupos para compreender a dinâmica do crime. “Eu adicionava scammers, ficava no círculo de amizade deles e sabia como eles conduziam os golpes.” Foi assim que ela aprendeu a seguir o rastro deixado pelos criminosos digitais.

Depois, ela criou um perfil falso no aplicativo de relacionamento que a amiga usava. Em pouco tempo, foi abordada por um suposto soldado americano. Em conversas com ele, pedia fotos e vídeos. Com esse material, Glauce encontrou o pai do soldado, contou a história a ele e pediu para conversar com o filho. Em um ano, ela ajudou a tirar do ar mais de 1,6 mil perfis falsos desse soldado no Facebook.

À amiga, Glauce sugeriu que continuasse em contato com o golpista para tentar rastreá-lo. Depois de localizar o verdadeiro dono das fotos, a vítima o confrontou. “Ele se revelou para ela: falou que era nigeriano e mandou fotos de si. Eles estavam até fazendo chamada de vídeo e ele a ensinava a falar inglês.”

Para manter o criminoso por perto, a vítima continuava a mandar itens para ele. Elas descobriram nome, idade, cidade onde ele morava e até o endereço da agência de correio em que ele retirava as encomendas. Glauce mandava e-mails por dia para a polícia da Nigéria, mas era sempre ignorada. Até que, em 2018, foi para a Alemanha e enviou o processo novamente. “Eles me responderam no mesmo dia e, na semana seguinte, prenderam o rapaz”, lembra.

A polícia nigeriana orientou a vítima a enviar um pacote para o golpista. A encomenda deveria ser endereçada a uma agência específica e a vítima deveria avisar o criminoso quando o pacote chegasse. A polícia, então, passou a monitorar a agência e o golpista foi preso quando chegou para retirar a encomenda. A vítima, infelizmente, não recuperou o dinheiro.

Quando começou nessa atividade, Glauce trabalhava 18h por dia. “O telefone de denúncias tocava e eu precisava atender. Agora, aprendi a equilibrar: no fim de semana, olho apenas para ver se há algo urgente.” Nessa época, sua família se preocupou com aquele comportamento. “Minha família começou a achar que eu tinha depressão. Deixei de ir a festas familiares, passeios e viagens e só ficava na frente do computador. Aquilo me fez muito mal, porque abandonei minha família. Então, hoje eu tomo cuidado. Demorou, mas aprendi a separar.”

Em geral, Glauce recebe cerca de 15 denúncias por semana — e muitas são de tentativas, não de golpes efetivados. Se aparece na imprensa, porém, esse número pode subir e chegar a 70 por dia. Entre fevereiro e dezembro de 2022, as vítimas que procuraram Glauce perderam, juntas, R$ 1.540.000.

Como é o golpe

Para atrair potenciais interessadas, os cibercriminosos perfis falsos para se aproximar das mulheres. Eles usam fotos e vídeos de outro usuário — em geral, um americano ou um canadense que não tem relação com o golpe. “Eles se apresentam como engenheiros de plataformas de petróleo, médicos em missões de paz ou militares em zonas de conflito.”

Depois que iniciam a relação a distância, eles descobrem o perfil da vítima e definem que golpe vão aplicar. “O mais comum contra as brasileiras é o golpe do pacote. O criminoso fala que está em uma zona de guerra ou em uma plataforma de petróleo e quer enviar presentes para ela”, explica. “Em seguida, ela começa a receber ligações para cobrar o pagamento de taxas alfandegárias. E as contas informadas são de pessoas comuns.”

Segundo Glauce, 96% desses golpes têm nigerianos envolvidos. “Eles atuam desde 1988, quando começaram a roubar fotos de soldados que lutavam na Guerra do Golfo e enviar por e-mail para mulheres”, explica. Atualmente, agem no mundo todo e têm comparsas nos países em que atuam. Os parceiros locais abrem e movimentam as contas bancárias para as quais as vítimas fazem transferências — para isso, recebem de 2% a 4% de comissão.

Ela conta que já houve muitas prisões desses golpistas no Brasil. Seus parceiros brasileiros cometem crimes ao se juntar a eles: estelionato, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e tráfico internacional de drogas. “Muitos dos nigerianos têm envolvimento com o tráfico.” Ela já chegou a entregar uma lista de contas-correntes para a Polícia Federal e a Polícia Civil. “Elas foram incluídas em uma investigação sobre a quadrilha que já estava em andamento”, diz.

É comum que as vítimas só percebam que foram enganadas depois de enviar muito dinheiro e, mesmo assim, os pedidos não pararem. Ao pesquisar sobre a prática, elas encontram Glauce. “Algumas delas ficam muito tempo envolvidas na situação. Essas, normalmente, têm algum transtorno que precisa ser tratado.”

Glauce diz que as vítimas do golpe do amor têm as mesmas características das vítimas de violência doméstica. Em ambos os casos, o abusador afasta a vítima da sociedade para ela não denunciar, a faz se dedicar a ele (na expectativa de receber algo) e a ameaça quando ela para de enviar dinheiro. “Só não há violência física porque é um crime virtual.”

Atendimento a vítimas

Glauce era analista de credenciamento médico, mas atualmente se dedica apenas ao Instituto GKScanOnline. Lá, oferece atendimento totalmente gratuito a vítimas dessa prática. A maioria são mulheres e, quando chegam à entidade, já perderam dinheiro — às vezes, somas muito significativas — e estão abaladas psicologicamente. Além disso, ela administra 14 grupos de apoio online e, em 12 deles, expõe os perfis falsos dos criminosos.

O instituto mantém, ainda, informações sobre novos tipos de golpes e atualizações sobre processos na Justiça — atualmente, são 14. “Oferecemos apoio jurídico e psicológico às vítimas.” Entre as mulheres que já passaram pela entidade, dois casos se destacam: em um deles, a perda foi de R$ 700 mil e no outro de R$ 580 mil.

O trabalho da instituição é totalmente voluntário e Glauce não recebe nenhum apoio. “Dependemos de doações, mas as mulheres já chegam com desfalque financeiro. Se pedimos para terceiros, muitos dizem que as vítimas deram o dinheiro porque quiseram. Existe muito descaso.”

Há, ainda, quem conheça o trabalho e diga que quer apoiar. “Muitos demonstram interesse, mas nunca passa da primeira conversa.” Enquanto isso, os crimes online têm crescido. “Quando comecei, era apenas o golpe do amor. Hoje, a cada dia surgem novas modalidades. A tendência é piorar, porque não há legislação específica e as plataformas são livres de responsabilidade.”

A entidade foi regularizada no ano passado e, para receber subsídio público governamental, precisa ter uma sede. “Só assim vou conseguir a documentação exigida pelo governo de São Paulo”, explica. “A prioridade é estruturar essa sede para ter a oportunidade de receber auxílios.”

Os perfis das vítimas variam. Segundo Glauce, existe a que se apaixona, a que acredita que há possibilidade de ganho financeiro e a que tem transtorno e precisa de tratamento. “A apaixonada chega em depressão, mas consegue se reerguer. A que busca lucro financeiro é a que chega mais revoltada e inconformada”, conta.

Já a que tem transtorno fica alheia à realidade. “Ela chega com a esperança de que o golpista seja de fato a pessoa que ele criou para atraí-la.” Essa avaliação é importante para definir como o instituto pode auxiliar aquela vítima. “A partir do momento que ela me procura, tenho de dar um destino a ela.”

Como agir

Algumas atitudes podem ajudar quem quer evitar ser vítima desse tipo de crime. Veja algumas dicas de Glauce:

  • não adicione quem não conhece;

  • procure manter os perfis em redes sociais o mais fechados possível;

  • lembre-se de que não existem engenheiros, médicos e militares em trabalhos isolados que não têm acesso a contas bancárias — eles, inclusive, são muito bem remunerados nessas atividades;

  • quando a história for muito triste (com acidentes, doenças e mortes), investigue antes de prosseguir;

  • se estiver em um relacionamento virtual com alguém com esse comportamento, procure a polícia e faça um boletim de ocorrência.

Ela destaca, ainda, que uma busca online pela fotografia do perfil supostamente falso pode impedir muitos desdobramentos. Além disso, a família precisa dar apoio. “Muitas vítimas têm vergonha porque a família não sabe do relacionamento ou já o condenava”, aponta. “Se houver apoio da família, elas não precisariam procurar o instituto.”

Glauce lembra que a forma de falar com a vítima pode mudar tudo. “É fundamental não julgar, porque a pessoa é uma vítima: ela foi induzida por golpistas muito convincentes. Se você chegar para uma pessoa apaixonada e disser que ela é vítima de um golpe, ela não vai simplesmente desligar um botão”, ensina. “É preciso ir devagar, mostrar os fatos, confrontar a realidade com o que o golpista fala.”

No decorrer desta semana, entre 6 e 10 de março, você encontra outras histórias de mulheres brasileiras que atuam de forma inovadora no segmento de tecnologia aqui no Itatiaia Tecnologia. Acompanhe todas elas: a segunda-feira (6) teve a criadora da cadela-guia robô Lysa, a quarta-feira (8) trouxe a pesquisadora que ajudou a criar a computação em nuvem, a quinta-feira (9) revelou a pesquisa da psiquiatra que demonstrou que as notificações de apps viciam e a sexta-feira (10) mostrou a engenheira que transformou um Fusca 1972 em carro elétrico.