Contatos a distância não são uma novidade da era da tecnologia. Eles existem há muito tempo, mas com a internet esse tipo de interação ganhou mais possibilidades. Nesse cenário, um golpe já antigo foi remodelado: é a
Leia mais:
O roteiro inclui um parceiro perfeito e uma relação virtual que avança rapidamente. A vítima é procurada por um golpista muito convincente, se apaixona por ele e passa a enviar dinheiro mediante pedidos absurdos, mas que, para ela, parecem justificados. Até perceber que foi enganada, pode ter um prejuízo financeiro considerável. Aí vem a vergonha: ela muitas vezes prefere não informar a polícia para não se expor nem ser submetida a julgamentos.
Em geral, as mulheres são mais propensas a buscar ajuda. Isso porque conseguem conversar com amigas e receber orientação. Isso não quer dizer, entretanto, que homens não são afetados: só que eles se calam para não demonstrar que foram vítimas de fraude e porque muitas vezes são casados. As estatísticas atuais, então, estão provavelmente distorcidas.
Depois de ver uma amiga passar por uma situação como essa, em 2011, Glauce Lima decidiu investigar a
Como Glauce atua
Após a ocorrência com a amiga, Glauce chegou a montar o perfil de um nigeriano e entrar em grupos para compreender a dinâmica do crime. “Eu adicionava scammers, ficava no círculo de amizade deles e sabia como eles conduziam os golpes.” Foi assim que ela aprendeu a seguir o rastro deixado pelos criminosos digitais.
Depois, ela criou um perfil falso no aplicativo de relacionamento que a amiga usava. Em pouco tempo, foi abordada por um suposto soldado americano. Em conversas com ele, pedia fotos e vídeos. Com esse material, Glauce encontrou o pai do soldado, contou a história a ele e pediu para conversar com o filho. Em um ano, ela ajudou a tirar do ar mais de 1,6 mil perfis falsos desse soldado no Facebook.
À amiga, Glauce sugeriu que continuasse em contato com o golpista para tentar rastreá-lo. Depois de localizar o verdadeiro dono das fotos, a vítima o confrontou. “Ele se revelou para ela: falou que era nigeriano e mandou fotos de si. Eles estavam até fazendo chamada de vídeo e ele a ensinava a falar inglês.”
Para manter o criminoso por perto, a vítima continuava a mandar itens para ele. Elas descobriram nome, idade, cidade onde ele morava e até o endereço da agência de correio em que ele retirava as encomendas. Glauce mandava e-mails por dia para a polícia da Nigéria, mas era sempre ignorada. Até que, em 2018, foi para a Alemanha e enviou o processo novamente. “Eles me responderam no mesmo dia e, na semana seguinte, prenderam o rapaz”, lembra.
A polícia nigeriana orientou a vítima a enviar um pacote para o golpista. A encomenda deveria ser endereçada a uma agência específica e a vítima deveria avisar o
Quando começou nessa atividade, Glauce trabalhava 18h por dia. “O telefone de denúncias tocava e eu precisava atender. Agora, aprendi a equilibrar: no fim de semana, olho apenas para ver se há algo urgente.” Nessa época, sua família se preocupou com aquele comportamento. “Minha família começou a achar que eu tinha depressão. Deixei de ir a festas familiares, passeios e viagens e só ficava na frente do computador. Aquilo me fez muito mal, porque abandonei minha família. Então, hoje eu tomo cuidado. Demorou, mas aprendi a separar.”
Em geral, Glauce recebe cerca de 15 denúncias por semana — e muitas são de tentativas, não de golpes efetivados. Se aparece na imprensa, porém, esse número pode subir e chegar a 70 por dia. Entre fevereiro e dezembro de 2022, as vítimas que procuraram Glauce perderam, juntas, R$ 1.540.000.
Como é o golpe
Para atrair potenciais interessadas, os cibercriminosos perfis falsos para se aproximar das mulheres. Eles usam fotos e vídeos de outro usuário — em geral, um americano ou um canadense que não tem relação com o golpe. “Eles se apresentam como engenheiros de plataformas de petróleo, médicos em missões de paz ou
Depois que iniciam a relação a distância, eles descobrem o perfil da vítima e definem que golpe vão aplicar. “O mais comum contra as brasileiras é o golpe do pacote. O criminoso fala que está em uma zona de guerra ou em uma plataforma de petróleo e quer enviar presentes para ela”, explica. “Em seguida, ela começa a receber ligações para cobrar o pagamento de taxas alfandegárias. E as contas informadas são de pessoas comuns.”
Segundo Glauce, 96% desses golpes têm nigerianos envolvidos. “Eles atuam desde 1988, quando começaram a roubar fotos de soldados que lutavam na Guerra do Golfo e enviar por e-mail para mulheres”, explica. Atualmente, agem no mundo todo e têm comparsas nos países em que atuam. Os parceiros locais abrem e movimentam as contas bancárias para as quais as vítimas fazem transferências — para isso, recebem de 2% a 4% de comissão.
Ela conta que já houve muitas prisões desses golpistas no Brasil. Seus parceiros brasileiros cometem crimes ao se juntar a eles: estelionato, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e tráfico internacional de drogas. “Muitos dos nigerianos têm envolvimento com o tráfico.” Ela já chegou a entregar uma lista de contas-correntes para a Polícia Federal e a Polícia Civil. “Elas foram incluídas em uma investigação sobre a quadrilha que já estava em andamento”, diz.
É comum que as vítimas só percebam que foram enganadas depois de enviar muito dinheiro e, mesmo assim, os pedidos não pararem. Ao pesquisar sobre a prática, elas encontram Glauce. “Algumas delas ficam muito tempo envolvidas na situação. Essas, normalmente, têm algum transtorno que precisa ser tratado.”
Glauce diz que as vítimas do
Atendimento a vítimas
Glauce era analista de credenciamento médico, mas atualmente se dedica apenas ao
O instituto mantém, ainda, informações sobre novos tipos de golpes e atualizações sobre processos na Justiça — atualmente, são 14. “Oferecemos apoio jurídico e psicológico às vítimas.” Entre as mulheres que já passaram pela entidade, dois casos se destacam: em um deles, a perda foi de R$ 700 mil e no outro de R$ 580 mil.
O trabalho da instituição é totalmente voluntário e Glauce não recebe nenhum apoio. “Dependemos de doações, mas as mulheres já chegam com desfalque financeiro. Se pedimos para terceiros, muitos dizem que as vítimas deram o dinheiro porque quiseram. Existe muito descaso.”
Há, ainda, quem conheça o trabalho e diga que quer apoiar. “Muitos demonstram interesse, mas nunca passa da primeira conversa.” Enquanto isso, os crimes online têm crescido. “Quando comecei, era apenas o golpe do amor. Hoje, a cada dia surgem novas modalidades. A tendência é piorar, porque não há legislação específica e as plataformas são livres de responsabilidade.”
A entidade foi regularizada no ano passado e, para receber subsídio público governamental, precisa ter uma sede. “Só assim vou conseguir a documentação exigida pelo governo de São Paulo”, explica. “A prioridade é estruturar essa sede para ter a oportunidade de receber auxílios.”
Os perfis das vítimas variam. Segundo Glauce, existe a que se apaixona, a que acredita que há possibilidade de ganho financeiro e a que tem transtorno e precisa de tratamento. “A apaixonada chega em depressão, mas consegue se reerguer. A que busca lucro financeiro é a que chega mais revoltada e inconformada”, conta.
Já a que tem transtorno fica alheia à realidade. “Ela chega com a esperança de que o golpista seja de fato a pessoa que ele criou para atraí-la.” Essa avaliação é importante para definir como o instituto pode auxiliar aquela vítima. “A partir do momento que ela me procura, tenho de dar um destino a ela.”
Como agir
Algumas atitudes podem ajudar quem quer evitar ser vítima desse tipo de crime. Veja algumas dicas de Glauce:
não adicione quem não conhece;
procure manter os perfis em redes sociais o mais fechados possível;
lembre-se de que não existem engenheiros, médicos e militares em trabalhos isolados que não têm acesso a contas bancárias — eles, inclusive, são muito bem remunerados nessas atividades;
quando a história for muito triste (com acidentes, doenças e mortes), investigue antes de prosseguir;
se estiver em um relacionamento virtual com alguém com esse comportamento, procure a polícia e faça um boletim de ocorrência.
Ela destaca, ainda, que uma busca online pela fotografia do perfil supostamente falso pode impedir muitos desdobramentos. Além disso, a família precisa dar apoio. “Muitas vítimas têm vergonha porque a família não sabe do relacionamento ou já o condenava”, aponta. “Se houver apoio da família, elas não precisariam procurar o instituto.”
Glauce lembra que a forma de falar com a vítima pode mudar tudo. “É fundamental não julgar, porque a pessoa é uma vítima: ela foi induzida por golpistas muito convincentes. Se você chegar para uma pessoa apaixonada e disser que ela é vítima de um golpe, ela não vai simplesmente desligar um botão”, ensina. “É preciso ir devagar, mostrar os fatos, confrontar a realidade com o que o golpista fala.”
No decorrer desta semana, entre 6 e 10 de março, você encontra outras histórias de mulheres brasileiras que atuam de forma inovadora no segmento de tecnologia aqui no Itatiaia Tecnologia. Acompanhe todas elas: a segunda-feira (6) teve a