O último episódio da série especial “Fim dos ‘manicômios judiciários': direito à saúde ou risco à sociedade?” foi ao ar nesta sexta-feira (12). As reportagens discutem a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que busca implantar a luta antimanicomial nos sistemas judiciário e penal do país. A Itatiaia mostrou que hospitais de custódia serão fechados e pessoas que cometeram crimes graves serão soltas para continuarem o tratamento em unidades de saúde ambulatoriais.
Um dos pontos mais polêmicos da resolução diz respeito a uma possível impunidade. Especialistas, militantes pela causa e aqueles que passaram pelos manicômios celebram a decisão do conselho, e garantem que os sentenciados são responsabilizados. Mas, familiares de pessoas que foram mortas por pessoas consideradas inimputáveis pela lei, ou que alegaram ter cometido o crime durante um surto, contam que tem uma percepção diferente: de injustiça.
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No início de Novembro de 2003, os estudantes Liana Friedenbach, 16 anos, e Felipe Silva Caffé, 19, foram acampar em uma área de mata em Embu Guaçu na Grande São Paulo. O casal foi rendido por um adolescente de 16 anos conhecido como Champinha e outros três maiores de idade.
Felipe foi morto primeiro, com um tiro na nuca. Champinha ficou vários dias com Liana sob seu domínio. A jovem foi estuprada e torturada diversas vezes. Com a polícia se aproximando, o adolescente matou Liana com várias facadas. Champinha, que era menor de idade, foi considerado inimputável pela lei e até hoje, quase vinte anos depois, ainda cumpre medida de segurança.
Ari Friendbach, pai de Liana, diz estar estarrecido e revoltado com a resolução do CNJ. “Isso é um verdadeiro escândalo. Não há possibilidade nenhuma, seja maior ou menor, destes criminosos serem colocados em liberdade. Nós sabemos que no Brasil não temos estrutura, como o CNJ pretende, para fazer esse acompanhamento em liberdade assistida. Só vamos descobrir isso quando eles voltarem a matar, a reincidir. Aí nós vamos saber quem é o Champinha novamente”, disse.
Ari Friendbach conta que mesmo 20 anos depois do crime, a dor não diminui.
"É algo que não há cura. A tristeza em vinte anos não diminui. Você apenas aprende a conviver com ela. Eu choro toda vez que me lembro de tudo o que eu passei e passo até hoje. A lembrança permanece, a tristeza permanece, o ódio também”.
Em 7 de fevereiro de 2019, outro caso. O coronel reformado da Polícia Militar de Minas Gerais, com 48 anos na época, pega uma corrida de aplicativo no bairro Santa Cruz Industrial em Contagem. Durante o trajeto, o militar aposentado teria tido um surto e mata a tiros o motorista, Aroldo Rodrigues Simão, de 35 anos. No julgamento Donato foi considerado inimputável e chegou a cumprir medida de segurança com restrição de liberdade, mas no momento se encontra nas ruas, sendo assistido pelo PAI-PJ.
Para Vanessa, irmã de Aroldo, o sentimento é que não houve justiça no caso da morte do irmão dela. “O Donato foi considerável inimputável com as alegações dele. Ele tá solto, vivendo a vida normalmente, como se nada tivesse acontecido. A gente não teve nenhuma justiça. A gente não tem acompanhamento dos órgãos, dos direitos humanos. A gente não tem acompanhamento de lugar nenhum. Quem se ‘estrepou’ mesmo foi meu irmão”, relata.
Vanessa ainda ressalta que o sentimento da família é de indignação com a resolução do CNJ. “Quem tinha que ter o tratamento ambulatorial é a família da vítima, porque a gente não oferece risco para a sociedade. Quem oferece tinha que estar preso, encarcerado. É um sentimento de revolta, fazer uma lei que deixa solto o assassino, opina.
Familiares temem ‘impunidade legalizada’
Em 22 de abril de 2023, mais um caso emblemático. O médico Vinicius Soares Garcia, de 31 anos, foi morto com pelo menos 28 facadas dentro do apartamento dele, na região do Barro Preto, em Belo Horizonte. O autor do crime, Vitor Dornas Ribas, de 30 anos, depois de cometer o homicídio procurou um hospital psiquiátrico e se internou, dizendo que estava em surto. Ele ainda deve passar pelo exame de sanidade mental que vai dizer se tinha ciência ou não de seus atos, ou seja, se pode ser considerado inimputável.
Ângela Garcia Soares, irmã de Vinicius, teme que a resolução do CNJ vire uma ferramenta para linhas de defesa de criminosos. “Acho que essa decisão traz uma possibilidade de impunidade muito maior. Acredito que vamos ter advogados que vão tentar sempre levar para esse lado e vão acabar conseguindo. É uma impunidade legalizada. Se a gente considerar aqueles que realmente tem algum problema psíquico, a família não vai ter condições de tratar. Devolver essa pessoa para a família cuidar não vai dar certo. A família já viu o que essa pessoa em surto é capaz e não está preparada para este tipo de atendimento”, aponta.
Esta série de reportagens trouxe pontos de vista diversos sobre a resolução do CNJ, já que o assunto é sensível e importante. Já há projetos de lei tramitando no Congresso para tentar barrar a resolução, e o debate, saudável e urgente, ainda pode ter novos capítulos.
A Itatiaia acompanha a história, com o objetivo de informar e sempre trazer diferentes vozes e visões sobre o tema. Mas até aqui, o que você pensa? A resolução do CNJ é um direito à saúde ou um risco à sociedade?
A série foi realizada com produção e edição de Pablo Nogueira, trabalhos técnicos de Thiago Castro, e reportagem de Renato Rios Neto.