Em 1871, foi publicada a Lei do Ventre Livre dispondo, em seu 1º artigo: “Os filhos de mulher escrava, que nasceram depois desta lei, serão considerados de condição livre”.
No mesmo ano, Machado publicou um conto quase esquecido, no “Jornal das Famílias”, nunca recolhido em livro, ao qual tive acesso graças a um trabalho de João César de Castro Rocha. Nele, a personagem Macedo retorna ao Brasil, após 15 anos na Europa, e reencontra Coutinho. Ambos acendem seus charutos (!) e este relata o caso da escrava Mariana, a qual era tratada pela mãe de Coutinho com os mesmos afagos dispensados às outras filhas, parecendo ver nela uma pessoa da família, salvo para se sentar à mesa ou quando havia visitas, eis a diferença: “no mais era como se fosse pessoa livre, e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da sua situação, e não abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que na situação em que se achava, só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora”.
A escrava se apaixona por Coutinho e logo percebe a impossibilidade da concretização daquela relação, impossibilidade essa fruto da hierarquia social, tornando aquele amor impossível. Ela dizia: “eu sei o que sou”.
Entretanto, seus sentimentos de amor não eram dispersados, contrastando com a fatalidade de sua condição social. Já ele tinha por ela apenas interesse sexual: “A rapariga tornara-se interessante para mim, e qualquer que seja a condição de uma mulher, há sempre dentro de nós um fundo de vaidade que se lisonjeia com a afeição que ela nos vote”.
Para complicar ainda mais o caso, Coutinho estava de casamento marcado com uma mulher da mesma sociedade à qual ele pertencia, o que leva Mariana a adoecer e fugir. A partir de então, o sentimento da família muda: de quase filha, a criada provoca indignação, ainda que os moradores da casa não soubessem da razão originária de seu desaparecimento: “Que sentimento devia inspirar a todos a insistência dessa rapariga em fugir de uma casa onde era tratada como filha?”.
Vê-se que era preciso sempre lembrar, nos burburinhos da Casa Grande, que, embora querida, a relação era de prestação de serviços e submissão.
Ao final, ela se mata, pedindo perdão pela ofensa de invadir outra classe social:
- “Nhonhô não tem culpa; a culpa é da natureza. Só o que eu lhe peço é que não me tenha raiva, e que se lembre algumas vezes de mim”.
Coutinho admite que nenhuma mulher o havia amado mais que aquela: “amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas no fundo, amor imenso e profundo, sincero e inalterável”.
Após relatar o caso, ouvido com tristeza, Coutinho e seu ouvinte, Macedo, restituídos à mocidade com aquela breve conversa, saem pelas ruas, “examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas”.
Lembrei-me desse conto ao refletir sobre como, em diversas situações, somos tomados pelo drama da indiferença, em que a proximidade física não é capaz de superar a distância social. Às vezes sequer sabemos o nome dos que nos servem. Outras, nem mesmo retribuímos o café servido, o ambiente limpo ou a vigilância de nossas residências. Aliás, por vezes, não damos sequer um simples “bom dia”.
Entretanto, mais que esses gestos, o conto de Machado nos leva à reflexão sobre o discurso meritocrático, de igualdade e oportunidade: “se lutar e batalhar, consegue”; “conheço fulano que veio do nada e progrediu”; “chega de mimimi, vitimização”; “nunca fui preconceituoso”…
Ora, é claro que as diferentes classes sociais podem até frequentar os mesmos ambientes, mas em condições e funções desiguais. Basta uma olhadela para o lado, seja nos condomínios fechados, clubes esportivos, trabalhos melhores remunerados, ou escolas das classes médias e altas. Aliás, nos que frequento, praticamente só há brancos. As exceções, normalmente, estão a nos servir, numa relação de submissão, em mundos distintos, separados por cor. E muitas vezes os que nos servem passam a nosso lado quase invisíveis, somos-lhes - salvo exceções- indiferentes. Ou então exercemos um paternalismo dissimulado, como Mariana, muito bem quista pela família, desde que não dispute o mesmo espaço. No conto, Coutinho dizia sobre a relação de dela com a família:
“Mariana era apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e senhoras. Meu tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: - “Por que diabo está tua mãe guardando aqui em casa esta flor peregrina? A rapariga precisa tomar ar”.
Fico a pensar em como a mera possibilidade das “Marianas” ocuparem os espaços na Medicina, no Direito ou até no lazer, a muitos atormenta. Se os filhos “de lá” superarem os “de cá”, então…
Dito isso, não há como negar, as origens da escravidão estão presentes no nosso dia a dia, aos montes (e prantos)! Como no conto “Pai contra mãe”, publicado pelo mesmo autor, em 1906: “O tempo não era de escravidão, era de liberdade. Liberdade com lágrimas, é verdade, mas liberdade”. Hoje, a violência física cedeu espaço, mas os papéis sociais bem delimitados, separados pela cor da pele, ainda permanecem. Eis o nosso desafio urgente, caro leitor.
Ops. Esses dias tenho me lembrado muito de Ariano Suassuna (1927–2014), que sempre valorizou a cultura nordestina e brasileira autêntica. Numa ocasião, convidado para um jantar na casa de uma “socialite” carioca, entre taças de vinhos e guardanapos bem passados, ela lhe perguntou:
— Você naturalmente já foi à Disney, né?
Ao que ele respondeu:
— Já fui aonde?
— À Disney!
Impressionado como ela tratava daquele lugar com tamanha familiaridade e intimidade, como se fosse uma extensão do quintal de sua casa, ele disse (imagino que já tomado por enorme curiosidade):
— Não, nunca fui à Disney, não.
A senhora arregalou os olhos, perplexa, incrédula:
— Foi aos Estados Unidos e não foi à Disney?
— Não… na verdade, eu nunca fui aos Estados Unidos. Nunca saí do Brasil.
Ela olhou com pena, não havia mais assunto, era como se ele não fosse do seu mundo. Ela, tão rica, chique, de bons hábitos. Ele, tão reles…
Ariano relatou de forma hilária esse caso em entrevistas, concluindo com humor:
“Não é possível… essa mulher divide a humanidade em duas categorias: quem foi à Disney e quem não foi. E eu tô desgraçado… porque não fui”.
Ariano Suassuna era um gênio, escrevia e conhecia o Nordeste como poucos, nos deixou obras imensas como o livro “O Auto da Compadecida”, já a socialite passou a vida a consumir. E na Disney, claro. Há que se divertir com as orelhinhas do Mickey.
Ops. Preta Gil nos deixou, mas suas lindas lições e seu desejo de viver são inesquecíveis. Que seu exemplo de força e luta nos semeie nessa nossa dura caminhada pela estrada escura, como ela cantou pela última vez:
“Drão, o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n’algum lugar
Ressuscitar no chão, nossa semeadura”