“Meu corpo foi percorrido por correntes elétricas”,
O trecho acima está em “Diário do Fim do Amor” (Ed. Fósforo, 2025), que traz camadas do fim de uma relação amorosa, recortadas por trechos de diários de escritoras famosas e de reflexões de Ingrid sobre a produção de diários. “A literatura cutuca a ferida e ajuda a formar uma casca”, afirma a autora à Itatiaia (leia a entrevista abaixo).
Na obra da jornalista e doutoranda em literatura pela Unicamp, lemos uma obra enquanto é construída. Enquanto se pergunta se conseguirá escrever um livro, a personagem Ingrid traz as entranhas dos próprios diários sobre um amor que a instigou, por cinco anos, em breves encontros e dilacerantes desencontros.
Ela também reproduz trechos de diários em que escritoras como
Uma face essencial do livro é contextualizar como a produção de diários passou a ser uma tarefa essencialmente feminina, a partir da Revolução Industrial, quando a separação entre ambiente público e privado deu aos homens o mundo e, às mulheres, a casa. Por ser uma condição feminina, a escrita de diários nunca foi valorizada enquanto literatura.
Mas precisa ser, mostra o diário de Ingrid: “Me tome na boca, me prove sem medo (…). Ser vulnerável, a ponto de quebrar, ainda é um troço muito poderoso”.
Entrevista com Ingrid Fagundez:
Itatiaia: Você considera “Diário do Fim do Amor” uma obra de autoficção? Essas classificações incomodam os autores, como você vê isto?
Olha, são interessantes para o autor ter consciência do projeto literário que ele pretende. Eu acho que elas também são sinais - pistas - e bússolas interessantes para os leitores. Eu não me incomodo, não.
No meu caso, eu não considero autoficção, porque eu não faço um jogo com o leitor - se sou eu ou não sou eu. Quando eu coloco os meus diários, não crio uma identidade para assumir esses escritos mais íntimos, eu assumo essa correspondência entre a personagem, que vive, a narradora e a autora. É diferente da autoficção, que tem um contrato dúbio. Eu digo que a personagem chamada Ingrid sou eu, assumo isso.
Itatiaia: Como foi esse clique, como você percebeu que poderia trabalhar com seus diários como literatura?
Fiz mestrado em literatura de não-ficção e sou jornalista. Sempre me interessaram os gêneros que lidam com o real. O relacionamento amoroso sobre o qual falo no livro coincidiu com minha saída do jornalismo, e à medida que fazia a transição, muito apaixonada, eu fui me desapaixonando. É o processo íntimo que narro no livro. Estava dando aulas e percebi nos diários de outras escritoras questões semelhantes às que eu estava escrevendo: os conflitos com o amor, com a escrita, a dificuldade da mulher de se colocar como alguém que cria em uma sociedade patriarcal e machista, e como é difícil assumir esse lugar. E comecei a ver valor nesses meus diários.
Apresentei para a Fósforo em 2021, para a Rita Matar. Como boa editora, ela me mostrou que essas discussões já estavam no texto, mas de forma subterrânea. “por que você não assume, de fato, toda essa potência que você está falando?” Porque já tava presente, mas muito tímido. Essas camadas dos ensaios e dos diários das escritoras eu já sabia que dialogavam. E precisei fazer essa costura. O que estava no subterrâneo, implícito, indireto, se tornou mais aberto, e permiti que o leitor fizesse essa viagem comigo. É o poder de uma boa editora, mostrar caminhos que você já está percorrendo sem saber.
Itatiaia: No livro, você mostra incômodo por escrever em fragmentos, mas isso te faz atravessar vários gêneros para construir a história. Essa fragmentação te ajuda nessa costura?
Eu acho que sim. A estrutura fragmentada é complexa. pode parecer mais fácil à primeira vista, mas é um quebra-cabeça. Você tem que juntar pedaços e eles não se encaixam, você tem que encontrar uma linha narrativa, um fio condutor. Foi uma delícia trabalhar com os fragmentos, pois te obrigam a tornar uma ordem muito consciente para não virar uma salada de frutas. Te obriga a dizer: “O que você está fazendo aqui? Por que esse trecho vem aqui e não depois?” me ajudou a ter um projeto mais consistente, não poderia inventar uma ordem qualquer pois o livro não fluiria. Isso me obrigou a pensar na ordem dos textos, apesar de dar mais trabalho.
Itatiaia: Você nunca parou de escrever diários. como relê-los e trabalhá-los como literatura te ajudou a curar aquela ferida e passar por aquele momento?
Eu tenho uma questão com a ideia de literatura que cura, sabe? A literatura cutuca a ferida e ajuda a formar uma casca. Para conseguir escrever literariamente sobre eventos muito traumáticos é porque algum processo de cura já foi feito. Para trabalhar a narrativa sobre um evento traumático e doloroso, isso já precisa ter sido elaborado, senão você não consegue mexer - Ou você não tem afastamento para mexer. A literatura é feita por pessoas em processo de cura, quando elas podem colocar a mão e cutucar aquilo. só consegui mexer nos meus diários porque eu já tava afastada da situação.
Itatiaia: Nesse distanciamento foi possível você ler aquilo e conseguir mostrar para alguém.
Precisei ter um distanciamento da situação para que fosse indiferente a ela. Tem trechos emotivos, mas são calculados. o apaixonamento não é controlado. Se fosse muito emotivo, não teria quem aguentasse. Quando a gente tem um amigo muito apaixonado é um saco, ele só fala daquilo (risos). É sempre um jogo, quase uma performance. Você precisa estar com um pezinho fora da paixão para identificar os contornos e a intensidade. É reproduzir a experiência da paixão, mas em doses, para que o outro se coloque nesse lugar de apaixonamento. Você ganha em perspectiva entendendo suas nuances, para que a intensidade do livro também varie. Precisa olhar a coisa de fora. Quando você está dentro, é engolido no apaixonamento, no luto, no amor. Isso acontece nas experiências muito intensas.
Itatiaia: As pessoas que viveram aquilo com você, ao lerem agora, reconheceram aquela história? Suas amigas, sua família…
Interessante. Quando o narrador-personagem tem relação próxima com o autor, quem te conhece já faz essa leitura dupla. A comparação com a vida, com as lembranças, experiências compartilhadas, aquilo que a pessoa sabe sobre você. recebi retornos bem variados, mas vão na mesma linha: ‘eu conheci a sua voz, era quase como se ao ler eu te ouvisse. Lembrei das coisas que a gente viveu junto, daquilo que você me contou’. O mais legal para mim é que o livro vai além. As pessoas se lembram daquelas situações, mas elas estão em uma nova moldura, é quase como se eu não conhecesse.
Freud tem uma expressão, o estranho familiar, que define aquilo que você reconhece, mas com certo distanciamento. Quando escutei as minhas amigas, lembrei disso que elas reconhecem, mas estranham também. São outros anteparos, que fazem com que a experiência se transforme. É vista de outra perspectiva, não de uma amiga em sofrimento passando por um término, mas de uma mulher que amou e perdeu e que está acompanhada de outras mulheres que passaram por isso e escreveram. E aí é quase como se eu fosse outra também.
Diário do Fim do Amor
- Autora: Ingrid Fagundez
- Editora Fósforo, 2025
- Preço: R$ 79,90
- Páginas: 216