Não há assunto mais importante para a política nacional esta semana que a guerra entre Lira e Pacheco. Estamos acompanhando um impasse político com implicações catastróficas para o país. Mas especialmente catastróficas para o governo Lula. Impasse sobre tramitação das medidas provisórias tem causado embates entre as Casas que podem paralisar o governo. Explico!
O Brasil adota um sistema bicameral simétrico e incongruente, ou seja, Câmara e Senado possuem semelhantes capacidades legislativas, embora tenham formas diferentes de seleção de seus membros. Além do Brasil, sistemas bicamerais simétricos e incongruentes também são adotados na Austrália, na Alemanha, nos Estados Unidos e na Suíça.
Em bicameralismos desse tipo, o sistema de resolução de conflitos entre as Casas Legislativas ganha especial importância. Se as duas Casas possuem semelhante poder para a aprovação de projetos de lei e sendo esses sistemas bicamerais incongruentes, a possibilidade de haver desacordos entre elas é potencializada, uma vez que uma forte incongruência potencializa a formação de distintas maiorias em cada Casa e a simetria dá-lhes igual ou semelhante capacidade de iniciativa e veto no processo decisório.
A situação atual no Brasil é atípica e por isso mesmo consegue ser ainda mais dramática. Antes da pandemia, as Medidas Provisórias passavam por uma análise inicial conjunta em uma comissão mista, formada por 12 integrantes de cada casa. Dessa forma, havia uma alternância entre senadores e deputados para relatar as MPs – o relator é o parlamentar que concentra as negociações e redige a versão final que vai à votação, já que as medidas provisórias podem sofrer modificações no Congresso. Após essa comissão, a proposta era apreciada no plenário da Câmara e, em seguida, no do Senado.
Esse rito, que está previsto na Constituição, foi alterado durante a pandemia, quando o funcionamento das comissões ficou suspenso. Com isso, as medidas provisórias passaram a ser analisadas diretamente pelo plenário da Câmara, o que deu poder extra a Arthur Lira de definir sempre um deputado para relatar a matéria.
A pandemia acabou, mas Lira gostou da assimetria e resiste a retomar o rito anterior. Lira argumenta que a Câmara estaria sub-representada nas comissões mistas, já que a casa indica o mesmo número de integrantes que o Senado (12), apesar de ser numericamente maior (são 513 deputados e 81 senadores).
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ao contrário, quer retomar as comissões mistas. Ele está certo, afinal, é isso que diz a constituição. E é esta simetria instituída que garante a relevância das duas Casas Legislativas. Do contrário, a própria existência do Senado estaria comprometida.
Diante da falta de acordo entre Lira e Pacheco, quem pode sofrer é o governo. Na fila de MPs a serem apreciadas estão, por exemplo, a que garante os R$ 600 mensais do Bolsa Família com adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos e a que reduz impostos sobre combustíveis. Todas as MPs editadas pelo governo Lula ainda estão no prazo de validade e podem ser prorrogadas, mas como ainda há medidas editadas no governo Bolsonaro na fila, o governo Lula busca uma alternativa para que nenhum ato perca validade.
Para quem acha que política não importa, que as regras são irrelevantes, ou que ritos democráticos são desnecessários, aqui está um exemplo da importância de o país saber seguir as regras, cumprir os ritos e decidir dentro do marco constitucional. O grito de Lira não pode ser tolerado, sob pena de que mais uma lei vire vista para os ingleses.