Um trenó batizado Rosebud pela criança que o possui é a um só tempo fio condutor e chave do enigma de “Cidadão Kane” (1941), dirigido e estrelado por Orson Welles e considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema.
O trenó simboliza para o menino pobre Charles Foster Kane liberdade e a possibilidade de escolher os próprios caminhos. Mas uma decisão abrupta o arranca do convívio familiar em direção a uma vida na cidade grande, sob o comando de um tutor desconhecido.
Rosebud é a última palavra proferida pelo personagem-título em seu leito de morte. Isso sugere que mesmo depois de alcançar o sucesso, usufruindo décadas de riqueza e poder, a melhor tradução de sua essência existencial continuava sendo o singelo brinquedo de neve da infância. Algo como a efetiva materialização da felicidade possível.
A cada começo de ano é comum esboçarmos um movimento voltado a mudanças, novos hábitos ou mesmo grandes guinadas. É quase um reflexo condicionado, ainda que as promessas típicas que fazemos a nós mesmos nessa época muitas vezes se esvaziem com o passar das semanas, podendo chegar ao fim do Carnaval completamente exauridas.
Aproveitando o tradicional balanço de perdas e ganhos realizado na virada do ano parece pertinente ir um pouco mais longe e tentar retomar nosso Rosebud pessoal, aquele elemento vital que preservamos mesmo quando esquecido em alguma gaveta da alma.
O que nos move agora é o mesmo que nos movia em outros finais de dezembro, às vésperas dos desembarques esperançosos em janeiros anteriores de intenções de uma vida renovada? Quais os projetos, ambições e ideais?
Está lá embutida uma boa camada de autoconfiança e certezas para implementar as realizações pretendidas? Ou trata-se de projetos, ambições e ideias com falsa vida própria, que mais interagem com o ambiente externo do que com nossos instintos, emoções, vontades e verdades interiores (sejam eles quais forem)?
Em uma montagem memorável no final do século 20, Renato Borghi e Esther Góes levaram aos teatros de São Paulo e de outras capitais “O que mantém um homem vivo?”. Era uma espécie de colagem de várias peças de Bertold Brecht marcadas por discussões éticas, políticas e sociais. Trechos de cada uma delas, devidamente costurados, conversavam perfeitamente entre si (em 2019 a iniciativa voltou aos palcos paulistas pelas mãos do mesmo Renato Borghi).
Entre um e outro sketch ator e atriz voltavam-se para o público atento e silencioso e, olho no olho, buscavam reflexões por meio da pergunta que podia soar incômoda: “Mas, afinal de contas, o que é que mantém um homem vivo?”
Rosebud e o questionamento existencial representado pelo bordão da pergunta brechtiana são faces sobrepostas de uma mesma moeda que deixamos no fundo do bolso, no mais das vezes, por absoluta falta de respostas às indagações implacáveis que ela nos faz quando a miramos. Uma moeda que não conseguimos varrer para debaixo do tapete.
Antes de acabar o verão, que no calendário gregoriano funciona como uma espécie de período de carência durante o qual a cobrança de metas ou resultados é limitada, vale a pena o exercício: tentar não virar as costas (até por quê inútil) para aquele componente inquieto, ruidoso ou latente, impregnado em alguma parte de nós que tenta impedir, a todo o custo, a passividade e o conformismo impulsionadores da frustração.
Sempre podemos, de forma bem resolvida ou não, deixar para trás situações, lugares e cenários que consideramos incômodos ou simplesmente ultrapassados.
“Mas de tudo fica um pouco”, como dizia o poeta no texto cujo título “Resíduo” é autoexplicativo. O mesmo Carlos Drummond de Andrade que, em meras dez palavras, exprimia a dimensão da lembrança da cidade natal que deixou jovem: “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói”.