Estávamos na segunda metade dos anos 1980. Eu era um jovem repórter do jornal de economia e negócios da Gazeta Mercantil, que deixou de circular em 2009, e fazia uma entrevista com Wolfgang Sauer, o então todo poderoso presidente da líder Volkswagen no mercado brasileiro.
No final da conversa ele me contou que sua empresa negociava uma exportação única para a China de 100 unidades do Passat de 4 portas (naquele momento, um modelo premium) a partir da fábrica de São Bernardo do Campo. Atônito, perguntei as razões da exportação de lote tão pequeno para um país tão distante e fora do mapa de negócios internacional. Isso depois da própria Volkswagen brasileira ter construído uma estratégia ousada para exportar 100 mil carros por ano para os mercados americano e canadense, este sim um movimento relevante.
A resposta de Sauer foi curta e simples: a China representava o futuro e a Volkswagen queria chegar lá antes de outras marcas do Ocidente para alcançar uma posição de protagonismo. De fato, por mais de vinte anos a marca liderou as vendas no mercado chinês, posição que perdeu apenas depois que o próprio país começou a produzir veículos mais confiáveis e conseguiu atraiu o interesse do consumidor local.
E o comprador daquelas cem unidades? Evidentemente, segundo Wolfgang Sauer, seria o Partido Comunista.
Esse diálogo me veio a cabeça depois de ter visitado na semana passada o Salão do Automóvel em São Paulo, evento que foi retomado depois de seis anos ausente do calendário.
No tradicional Parque Anhembi, em São Paulo, lá estavam novamente os muitos milhares de aficionados por automóveis, só que desta vez as atrações do show não eram as de sempre. Apesar de presentes Fiat, Citroen, Peugeot, Honda, Toyota e Renault estavam ausentes Volkswagen, General Motors, Ford, Nissan, Audi, Mercedes-Benz, BMW, Volvo, Jaguar e Land Rover.
Ao mesmo tempo, estreavam no Salão do Automóvel dez marcas chinesas, algumas das quais já associadas a montadoras tradicionais como Renault (no caso, a Geely) e a Stellantis (Leapmotor).
Hoje as marcas chinesas já possuem 10% do mercado nacional, e os números devem continuar subindo rapidamente. Já operam fábricas no país a Chery e a JAC Motors (ambas em sistema de parcerias com terceiros), a BYD (que já inaugurou sua fábrica na Bahia) e a GWM (fábrica própria no interior de São Paulo).
No Salão do Automóvel tal protagonismo estava claramente identificado, com aquelas dez marcas exibindo diversos modelos e versões em seus estandes.
A China, na verdade, tornou-se o maior fabricante de veículos do mundo, com 31,3 milhões de unidades em 2024, e é também líder no ranking dos países exportadores. Trata-se de número tão expressivo que para equipará-lo é preciso somar as produções dos quatro países que vêm a seguir: Estados Unidos (11,9 milhões de unidades), Japão (8,2 milhões), Índia (5,6 milhões) e México (4,3 milhões).
O Brasil, oitavo colocado na lista (atrás de Coreia do Sul e Alemanha, cada qual com 4,2 milhões) produziu no ano passado 2,5 milhões de veículos e situa-se na sexta posição no ranking de consumo desses produtos atrás de China, Estados Unidos, Japão, Índia e Alemanha.
A estratégia chinesa ao longo da última década foi a de praticamente criar para si um novo segmento de mercado. Em lugar de correr atrás de tradicionais marcas ocidentais com seus modelos de motores a combustão, Pequim apostou alto na criação de uma ampla gama de modelos elétricos.
Com restrições impostas para a venda dos altos volumes desejados nos mercados americano e europeu, a China passou a buscar alternativas, expandindo agressivamente suas exportações para países do chamado “Sul Global” (economias emergentes de diferentes continentes, Brasil incluído).
Hoje seus modelos já possuem uma participação de 38% nas vendas globais de todos os tipos de automóveis e de 60% nas vendas específicas dos modelos elétricos. Além disso, nenhum outro país opera um ecossistema tão amplo nesse segmento, que inclui desde a liderança na fabricação de baterias como a de fornecimento de equipamentos para recarga dos VEs.
Wolfgang Sauer tinha razão. O futuro do automóvel tinha encontro marcado com a China.