Foi com as três palavras acima, adaptação do famoso lema da Revolução Francesa que substituiu o tradicional “Fraternité” por “Fragilité” que Ian Bremmer, analista internacional e fundador da consultoria de risco Eurasia, definiu de forma irônica e cirúrgica o atual cenário político da França.
A renúncia do primeiro-ministro Sébastien Lecornu na última 3ª feira, menos de um mês após sua posse, mergulhou definitivamente o país em uma crise política que, na verdade, começou a ganhar corpo por mais de um ano a partir da decisão do presidente Emmanuel Macron de dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas antecipadas para junho de 2024. Disso resultou num novo Parlamento cuja fragmentação acabou inviabilizando a formação tanto de uma maioria como de uma coalizão capaz de garantir sustentação ao governo.
A França não vivia uma crise política dessa magnitude há décadas. Desde 2022 Paris contabiliza cinco sucessivos primeiros-ministros, incluindo o demissionário desta semana. Nessa sexta-feira, 10 de outubro, o presidente convocou uma reunião com líderes partidários visando abrir espaço para uma solução institucional, mas sem resultados.
Eleito pela primeira vez em 2017 Macron se tornou o mais jovem chefe de estado da história da França aos 39 anos. Na ocasião foi saudado como bem-sucedido profissional do setor financeiro capaz de implantar uma visão mais moderna na administração federal. Reeleito em 2022, enfrentou desafios em diferentes frentes, o maior deles a aprovação da mudança da idade mínima para aposentadoria de 62 para 64 anos, o que gerou muito descontentamento e enormes protestos pelo país.
Macron chega à reta final do segundo mandato esvaziado politicamente. E pressionado pela direita e pela esquerda a antecipar as eleições presidenciais previstas para 2027 (medida que ele garante não tomará) ou pelo menos convocar novas eleições legislativas.
Os números da economia também não ajudam. O Produto Interno Bruto (PIB) deste ano está estagnado, assim como o consumo das famílias. Ao mesmo tempo, o déficit orçamentário que superou os 5% no ano passado continua preocupante e a dívida pública bateu em 114% do PIB (como comparação, a dívida pública brasileira de 77% do PIB já é considerada elevada pelos padrões internacionais).
O presidente está na berlinda e no foco da imprensa da pior maneira. O Financial Times, respeitada publicação inglesa de economia e negócios, afirmou no título de artigo em sua edição da última 4ª. feira: “O nocivo crepúsculo de Macron”. O New York Times foi na mesma linha: “Enquanto a França enfrenta a turbulência política, Macron está encurralado”.
O jornal conservador francês Le Figaro escreveu: “Abandonado pelos seus, Macron tenta sair do atoleiro”. Já o tabloide satírico Charlie Hebdo publicou a charge do chefe de estado com semblante apavorado e uma corda no pescoço, como se estivesse prestes a ser enforcado.
A falta de maioria legislativa tem sido fatal para o ocupante do Palácio do Eliseu. A crescente polarização entre a esquerda e a extrema direita reduziu bastante a capacidade de manobra de seu governo. E isso em um cenário onde reformas fiscais e previdenciárias, consideradas fundamentais para conter a dívida pública, não encontram eco na sociedade e no ambiente político.
Essa instabilidade política ocorre em um péssimo momento para a União Europeia. Um eventual prolongamento da crise pode afetar a credibilidade financeira do país e gerar impactos negativos na região, uma vez que a França é a segunda economia do bloco. Por isso mesmo Bruxelas observa o cenário atual com grande preocupação já que também precisa lidar com outras questões sensíveis: a escalada nas tensões com a Rússia; uma nova realidade do comércio internacional resultante de políticas protecionistas de Washington; o desafio de ampliar a competitividade do bloco; o avanço no continente de forças políticas de direita cada vez menos alinhadas a União Europeia e cada vez mais simpáticas a Moscou (mais recente capítulo nesse processo: as eleições legislativas na República Tcheca que estão levando o bilionário Andrej Babis ao cargo de primeiro-ministro).
Não se pode esquecer também que a França é peça importante no contexto do processo de ratificação do acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. A oposição local ao tratado é liderada pelo seu setor agrícola, que teme a concorrência de carne bovina, frango, açúcar e milho provenientes do Brasil e da Argentina. A alegação é de que os países do Mercosul não estão sujeitos ao mesmo nível de exigências imposta pela União Europeia aos produtores do continente.
Uma França enfraquecida não interessa a Europa nem ao mundo democrático de forma geral. Mas a realidade é que seu sistema político dá sinais de fatiga. Por isso mesmo hoje parece difícil entoar o consagrado verso da Marselhesa, segundo o qual “Le Jour de gloire est arrivé”.