A palavra “boteco” vem de longe — e, ao mesmo tempo, de muito perto. Sua raiz está no português arcaico “botica” e no espanhol antigo “bodega”, oriundo do latim apotheca, que significava depósito ou armazém. Ao atravessar o Oceano Atlântico, a palavra foi se abrasileirando até se transformar em “boteco”: nome carinhoso que passamos a dar aos pequenos estabelecimentos que vendem bebida e comida, com prosa incluída. Esses são espaços onde o tempo parece dobrar a esquina, onde cada gole é temperado com memória.
Boteco, no Brasil, nunca foi só comércio. É sociabilidade, política, música, escape e refúgio. Um espaço onde a cidade se encontra com ela mesma. E poucas cidades entenderam isso tão bem quanto Belo Horizonte. Dizem, com orgulho, que somos a capital dos botecos. A alcunha se justifica: são mais de 4 mil bares espalhados pela cidade, com uma densidade que beira o sagrado. Contudo, antes de sermos multidão, fomos um.
O bar mais antigo em funcionamento da cidade tem nome, endereço e história: o Bar do Orlando. Fundado em 1919, no coração do bairro Santa Tereza — ainda uma vila suburbana à época — o bar nasceu com outro nome: Bar dos Pescadores. Funcionava como armazém de secos e molhados, vendia artigos de pesca e servia bebida para quem pescava no Ribeirão dos Arrudas, antes que o curso d’água fosse canalizado e sumisse do mapa visível da cidade. Era ponto de parada de lavradores, operários e tropeiros. Um entreposto de gente e de causos.
Durante décadas, o estabelecimento resistiu às transformações do entorno, mantendo-se firme na lida diária. Em 1980, foi adquirido por Orlando Siqueira, que viria a dar nome definitivo ao local. Desde então, o Bar do Orlando passou a ser conhecido não apenas pela tradição, mas também pela cozinha que honra o paladar mineiro. O “Torresmão” virou lenda. O “Trio da Roça” — torresmo, mandioca e linguiça — virou rito. Tudo servido sem pressa, como manda o espírito do lugar.
O bar é simples, sem afetação. Tem paredes com fotografias, azulejos que já ouviram mais conversa do que muito mercado. O balcão é testemunha da história. Por ele já passaram boêmios, músicos, políticos, vizinhos e turistas. Todos atraídos por aquilo que escapa às métricas tradicionais: autenticidade.
O Bar do Orlando, mais do que comércio, tornou-se símbolo. É parte do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, reconhecido por sua contribuição à identidade do bairro e da cidade. Ali, preserva-se uma forma de estar no mundo. Enquanto cafeterias gourmet tomam as grandes avenidas, o bar resiste com sua cadeira de plástico, seu copo americano, seu gole honesto de cachaça.
Hoje, o filho do Orlando — conhecido como Orlandinho — segue no comando. Mantém o bar com o mesmo espírito do pai: caloroso, direto, sem frescura. Santa Tereza, aliás, tem nisso um traço marcante. É berço do Clube da Esquina, da boemia culta, dos encontros que viram música. Não por acaso, Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes já passaram pelo Bar do Orlando. Não como celebridades, mas como vizinhos que voltam ao lugar onde a biografia repousa.
O boteco é, afinal, a síntese da mineiridade. Cabe ali o exagero do “uai”, a filosofia do trem, a pausa do cafezim, a astúcia da política e a leveza da prosa. E se Minas Gerais é feita de cidades e cidades são feitas de gente, os botecos são os palcos onde essa gente se apresenta — todos os dias — em atos simples e verdadeiros.
O Bar do Orlando não é só o bar mais antigo em funcionamento de Belo Horizonte. É um monumento vivo daquilo que nos faz cidade. Uma esquina onde o tempo não passa: repousa. Onde a história não se lê: se bebe. Onde a cultura não se expõe: se vive. E é por isso que, em cada boteco belo-horizontino, de algum modo, Orlando também serve um torresminho e sorri. Devemos todos nós, donos de bares, muito ao nosso antepassado comum.