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Independência financeira é liberdade de escolha

“A figura da ‘mulher-troféu’ — aquela que é sustentada pelo parceiro e cuja aparência se torna um símbolo de status para ele — tem sido cada vez mais romantizada”

Recentemente assisti uma matéria veiculada na BBC que noticiava uma geração de mulheres suecas que estão parando de trabalhar para serem “namoradas que ficam em casa”, sustentadas pelos parceiros, e que recebem uma quantia mensal para que deixem o trabalho. O tema chamou mais atenção ainda pelo fato da Suécia ser um país com reputação global de defender a igualdade de gênero, com mais de cinco décadas de políticas destinadas a promover dupla renda nas famílias.

As chamadas “soft girls”, que optam por depender financeiramente de seus companheiros, justificam essa escolha como uma forma de buscar uma vida mais tranquila e equilibrada — e isso se tornou um dos principais temas de discussão na Suécia. Muitas alegam que estão se afastando do ideal da “girl boss” (mulher chefe) devido à pressão extrema para alcançar sucesso em todas as áreas da vida, além do esgotamento causado pelo trabalho.

No Brasil, uma discussão semelhante tem ganhado força, especialmente com a influência das redes sociais. Uma discussão semelhante tem ganhado força, especialmente com a influência das redes sociais. A figura da “mulher-troféu” — aquela que é sustentada pelo parceiro e cuja aparência se torna um símbolo de status para ele — tem sido cada vez mais romantizada.

Pessoalmente, respeito as escolhas individuais e reconheço que muitas mulheres enfrentam uma sobrecarga excessiva, dividindo-se entre a carreira e as responsabilidades domésticas. Assim, a ideia de se preocupar apenas com o próprio bem-estar pode, à primeira vista, parecer tentadora.

No entanto, vejo essa dependência financeira como um caminho arriscado e delicado. Como advogada, recebo diariamente relatos de mulheres que abriram mão de suas carreiras para se dedicarem à família e, anos depois, se veem presas em relações insatisfatórias, sem autonomia financeira para recomeçar. Enquanto, em grande parte desses casos, seus parceiros avançaram profissionalmente, elas ficaram em segundo plano.

Com o tempo, essas relações podem se desgastar, e a falta de independência pode afetar profundamente a autoestima e a confiança dessas mulheres. Em situações mais extremas, quando há violência psicológica, ameaças ou até agressões físicas, muitas continuam presas ao relacionamento simplesmente porque não têm para onde ir ou como se manter.

A criminologia, ciência que estuda, dentre outros fatores, a situação da vítima e o controle social dos crimes, traz um conceito interessante dentro desse contexto: a chamada “Síndrome da Gaiola de Ouro”. Essa condição emerge quando mulheres se sentem aprisionadas dentro de relacionamentos abusivos.

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Tais casos manifestam-se de maneira acentuada quando as violências psicológicas que ocorrem dentro do relacionamento, como desrespeito e controle excessivo, estão entrelaçadas a questões de status, dependência emocional e financeira, profissão e famílias reconhecidas, surgindo, pois, como uma forma de manipulação e aceitação ligada a diversas dinâmicas de poder. A complexidade do cenário se intensifica quando o receio da exposição pública as leva a manter situações de fachada para manter uma imagem de normalidade como forma de esconder a situações que enfrentam.

Em situações mais extremas, como nos casos em que há violência e lesão corporal, ou até mesmos ameaças, mulheres permanecem juntas do seu agressor por não terem para onde ir, ou como se manter. Penso que esse é um tema interessante e cheio de nuances, especialmente quando o mercado de trabalho não apresenta boas oportunidades ou a flexibilidade necessária para que mulheres consigam conciliar os seus deveres profissionais com os cuidados domésticos e familiares. Ou impõe inúmeros desafios que tornam esse caminho exaustivo.

No entanto, acredito que preservar a independência financeira é uma das formas mais eficazes de garantir segurança e liberdade de escolha. A vida real é muito mais do que uma ilusão de vários pratinhos equilibrados. Alguns irão cair, outros irão rachar, e tudo bem. Não precisamos ser perfeitas em tudo. O que realmente importa é preservar a autonomia, a autoestima e a liberdade.

Acredito que a verdadeira liberdade de escolha só existe quando acompanhada da autonomia. E a autonomia só é alcançada quando a mulher tem segurança para decidir o próprio caminho, seja ele dentro ou fora do mercado de trabalho — ou de um relacionamento.


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Clarissa Nepomuceno é advogada e sócia do escritório Nepomuceno Soares Advogados. Palestrante e professora universitária, defende que a independência financeira e a construção da carreira são fundamentais na ruptura dos ciclos de violência e para o alcance do ODS 5 – Equidade de Gênero.
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