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Com presença de ministra, Mari Ferrer dá passo final para se formar em direito: ‘Por todas as vítimas’

A jovem, que atualmente tem 28 anos, cursa direito e apresentou um TCC inspirado em sua vivência como vítima de violência sexual

Sete anos após relatar ter sido estuprada, a jovem concluiu o TCC

“É uma vitória que transcende a minha pessoa. É por todas as vítimas.” A declaração é de Mariana Ferrer, de 28 anos, que cursa o 9º período de Direito em uma faculdade particular e apresentou, na última semana, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), inspirado na própria história — o caso de violência sexual que ganhou repercussão nacional em 2018, após denúncia de estupro em um beach club de Florianópolis.

Mariana, que transformou a dor em luta, está prestes a encerrar o ensino superior e colocar tudo o que aprendeu a serviço dos direitos das vítimas. A apresentação contou com presenças importantes, como a da ministra Maria Elizabeth Rocha, presidente do Superior Tribunal Militar, e da ativista Maria da Penha, que inspirou a criação da lei que leva seu nome e estabelece medidas para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher.

“Após ser vítima de estupro em 2018, demorei a compreender meu propósito e o que faria com a dor e a luta que me foram impostas — pois não as escolhi”, disse. Ela contou que a decisão de ingressar na faculdade de direito surgiu ao assistir ao documentário ''Justiça para Todas’’, disponível na Netflix, protagonizado pela advogada Gloria Allred, que transformou duas violências que sofreu — em momentos distintos da vida — em força para si mesma e para outras vítimas.

“Ela atuou em casos emblemáticos contra Harvey Weinstein, Bill Cosby e outras figuras denunciadas no movimento Me Too, onde muitos teriam se acovardado”, contou Mariana à Itatiaia.

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Desde o início da graduação, Mariana sabia que o tema do TCC estaria ligado a sua experiência pessoal como sobrevivente de violência sexual. Assim nasceu o trabalho: “Estupro simbolicamente como crime de guerra à luz do caso Mariana Ferrer: o legado no avanço ao direito das vítimas e seu impacto na sociedade”.

“A escolha do título surgiu após o diagnóstico por parte dos profissionais da saúde que me acompanham —, dos traumas e sequelas psicológicas severas que adquiri pós estupro, tais como: síndrome do pânico, transtorno de estresse pós-traumático, depressão, fobia social, ansiedade generalizada, terror noturno e depressão e que se agravaram devido às inúmeras violações que se sucederam”, contou.

Ela disse que revisitar tudo que sofreu não foi fácil, mas importante. “Por incrível que pareça, o processo de elaboração inicial foi mais “sereno” do que imaginei — talvez pela necessidade urgente de colocar no papel toda a verdade que esteve entalada na minha garganta durante esses anos e que me atormentava nos momentos de crise de pânico”, contou.

Além da ministra Maria Elizabeth Rocha e de Maria da Penha, autoridades aplaudiram a nota máxima conquistada pelo trabalho da jovem, como Luciana Rocha, juíza auxiliar da Presidência do CNJ; o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta com sua esposa, a advogada Dra. Diana Cazetta e Vanja Andréa Santos, presidente da União Brasileira de Mulheres (UBM).

Sob aplausos e emoção, Mariana Ferrer apresentou, nessa quarta-feira (2), o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que marca uma parte concluída de sua graduação em direito

“Acredito que não tenha uma pessoa que não tenha se debulhado em lágrimas e sou muito grata a Deus por me cercar de pessoas tão inspiradoras, como as que estiveram comigo nessa noite tão especial e histórica”, disse.

Lei Mari Ferrer

Em novembro de 2020, o Brasil ficou escandalizado com as imagens divulgadas pelo The Intercept Brasil mostraram o advogado de André Aranha atacando Mariana Ferrer durante uma audiência. Na ocasião, foram feitos comentários misóginos, além da exposição de imagens manipuladas da vítima. O vídeo também mostrou que o defensor desrespeitou Mariana por diversas vezes, sem qualquer intervenção do juiz ou do promotor de Justiça.

Foi diante dessas e outras violações durante o inquérito e todos os atos judiciais que surgiram a Lei nº 14.245 Mariana Ferrer que prevê punições para atos que atentem contra a dignidade de vítimas de violência sexual e de testemunhas durante julgamentos. Em outras palavras, a lei buscar punição dos agentes públicos que não souberam conduzir as audiências com respeito à vítima.

Mari não foi beneficiada pela própria lei, mas a celebra como um avanço importante na luta pelos direitos das vítimas. Ainda assim, reconhece que os desafios para sua efetiva aplicação são muitos:

O principal desafio para o cumprimento integral dessa e de todas as demais legislações nas delegacias, tribunais e hospitais reside justamente na necessidade de uma mudança de paradigma: mais do que cumprir um protocolo, trata-se de reconhecer a vítima em sua integralidade, resguardando sua dignidade e garantindo que seja tratada com respeito desde o primeiro atendimento.
Mariana Ferrer, sobrevivente de violência sexual e estudante de direito

Ela defende que a Lei 14.245 seja continuamente sendo aprimorada, fiscalizada e monitorada, para que se consolide como um verdadeiro instrumento de proteção à dignidade de todas as vítimas.

Mariana reconhece que a luta pelos direitos das mulheres ainda é cheia de incertezas e ressalta que não é possível baixar a guarda. “Quando falamos sobre os direitos das mulheres, todos os dias enfrentamos um campo minado: precisamos proteger aquilo que já conquistamos com tanto esforço para que não haja retrocessos, ao mesmo tempo em que seguimos atentas e firmes na luta por aquilo que ainda nos é negado. É uma batalha constante e exaustiva, mas, quando damos as mãos, tornamo-nos imbatíveis.”

Denuncie

Ela também ressaltou que denunciar é um ato de coragem, mas não deve se tornar uma sentença contra si mesma.

Se eu pudesse olhar nos olhos de cada vítima que viveu, ou ainda vive, o horror de uma violência, diria antes de tudo: a sua verdade é suficiente. Nós não precisamos da validação do Estado nem do silêncio cúmplice dos processos para saber o que nos atravessou. Sabemos o que sentimos, os medos, os traumas, sequelas, as marcas que podem não aparecer fisicamente mas transparecem em nosso olhar e gritam por dentro. Saber de si é tudo.
Mariana Ferrer, estudante de direito e sobrevivente de violência sexual

Para a estudante de direito, denunciar não significa apenas expor o agressor, mas também proteger outras mulheres e reivindicar algo ainda maior: “seu espaço, sua dignidade, e a sua humanidade.”

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Recurso

Mariana venceu uma Reclamação Constitucional em 2024, na qual o Ministro Alexandre de Moraes elencou todas as violações que a vítima sofreu — não apenas durante a audiência, mas ao longo de todo o processo. Atualmente, ARE 1541125, também de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, está em fase de julgamento da repercussão geral, com o pedido de inúmeras entidades e órgãos para atuarem como amicus curiae.

Entre eles, está a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Minas Gerais (OAB-MG), Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Procuradoria do MPMG, Procuradoria do MPSP, Instituto Maria da Penha, Instituto Brasileiro de Atenção e Proteção Integral de Vítimas (Pró-Vítima), União Brasileira de Mulheres (UBM), entre outros.

Formou-se em jornalismo pela PUC Minas e trabalhou como repórter do caderno de Gerais do jornal Estado de Minas. Na Itatiaia, cobre principalmente Cidades, Brasil e Mundo.