Ouvindo...

Masturbação coletiva por alunos de medicina fere ética médica; entenda o porquê

Médico e professor explica conjunto de princípios que regem a profissão; MEC e CFM repudiam atitude de alunos

O Conselho Federal de Medicina (CFM) se posicionou repudiando o ato dos alunos de uma faculdade de medicina de São Paulo, que praticaram “masturbação coletiva” durante um jogo de vôlei feminino da atlética do curso, atitude que fere a ética médica. A Universidade Santo Amaro (Unisa), inclusive, foi notificada pelo Ministério da Educação, que irá apurar as providências tomadas pela instituição.

A ética médica é um conjunto de princípios que devem ser seguidos pelo médico a fim de garantir o respeito à dignidade e autonomia dos pacientes. Atitudes de importunação sexual e assédio moral ou sexual, por exemplo, ferem os princípios da ética médica e podem acarretar processos tanto na Justiça, quanto no CFM.

“A prática diária da Medicina é complexa e relaciona-se a enfrentar situações de estresse, dilemas éticos, pressões externas ou mesmo tentações que podem comprometer a qualidade do cuidado. Portanto, o poder e conhecimento médico devem ser utilizados com responsabilidade e estar sempre a serviço de fazer o bem ao paciente. De nada adianta o profissional ser detentor de vasto conhecimento teórico, habilidades práticas de precisão ou acesso às melhores inovações tecnológicas, se a sua aplicação não está ligada à ética médica”, argumentou o médico Leandro Duarte de Carvalho (CRMMG 37.977), chefe do departamento ético-legal da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (CMMG)

Carvalho, doutorando em Bioética pela Universidade do Porto, em Portugal, explica que é obrigatório o ensino de ética médica e bioética nas faculdades de medicina brasileiras, mas que muitas vezes as disciplinas não são bem implementadas e acabam sendo mal compreendidas pelos alunos.

“A formação adequada e ampla de um estudante de medicina está diretamente relacionada ao futuro exercício profissional de qualidade no atendimento médico, comunicação assertiva, respeito humano, comportamento ético adequado, disponibilidade e, essencialmente, ao estreitamento da verdadeira relação médico-paciente. Isso não é algo que se aprende da noite para o dia”.

Leia mais:

Vida pessoal X vida profissional

Ainda conforme o professor Leandro Duarte de Carvalho, um comportamento inadequado exagerado do médico no âmbito pessoal pode influenciar o exercício da profissão, já que a medicina é baseada na confiança da relação entre médico e paciente. Por isso, Carvalho argumenta que é esperado que os profissionais de saúde ajam com “lisura” e equilíbrio.

“O comportamento esperado de um médico é fazer o bem do paciente. A sociedade espera um comportamento compatível aos valores e virtudes que garantem uma prática ética e humana no caráter de um médico ou futuro médico, no caso de estudante. Logo, não é que se deve ‘pedir lisura’ aos médicos ou estudantes, é uma exigência implícita na escolha daquela pessoa que decidiu cuidar de outros seres humanos. A temperança ensina a evitar excessos, seja em festas, estudos ou trabalho, e buscar um equilíbrio saudável entre vida pessoal, acadêmica e profissional. Tal equilíbrio é crucial para garantir a saúde mental e física, bem como a clareza de pensamento na prática médica. Se alguém pretende cuidar da saúde do outro, em primeiro lugar deve cuidar de sua própria saúde”.

O médico e professor explica, ainda, que pacientes que confiam em seus médicos se sentem menos ansiosos quanto ao tratamento, e por isso é essencial haver uma relação de respeito dentro dos hospitais, clínicas e consultórios.

“A confiança permite que os pacientes compartilhem informações sensíveis, tão íntimas, que podem ser cruciais para o diagnóstico, prognóstico e tratamento. Pacientes que confiam em seus médicos frequentemente se sentem mais apoiados e menos ansiosos sobre sua condição ou tratamento. O ato de ouvir atentamente, oferecer conforto e ser transparente nas interações são fundamentais para a autonomia do paciente. A confiança é um elemento indissociável da boa prática médica”.

Casos de assédio sexual e violência

Nessa terça-feira, o cirurgião plástico Hudson de Almeida, acusado de abusar sexualmente de pelo menos 11 pacientes em Alfenas, no Sul de Minas, foi condenado por ato libidinoso contra uma mulher durante uma consulta. Ele foi preso em agosto após ficar três meses foragido.

Além disso, em João Pessoa, capital da Paraíba, um médico e ex-diretor clínico de um hospital municipal foi exonerado do cargo pela prefeitura, no início de setembro, após a divulgação de um vídeo que mostra ele agredindo a esposa dentro do elevador.

O professor Leandro Duarte de Carvalho afirma que existem “tradições machistas, atrasadas e equivocadas” em alguns ambientes profissionais que praticam a medicina, o que pode acabar tornando as vítimas ainda mais vulneráveis e criar uma “cultura de silêncio”.

“Se aquele que deveria acolher, ensinar, avaliar e promover avanço na curva de aprendizado está comprometido pelo desvio do poder, utilizando indevidamente da profissão e posição que ocupa, há um perigoso desequilíbrio, tornando as vítimas mais vulneráveis e, muitas vezes, relutantes em denunciar o assédio por medo de represálias e receio de prejuízo na carreira profissional. A vítima, frequentemente, pode ser culpabilizada ou desacreditada, enquanto o comportamento do agressor é protegido ou justificado”.

Por isso, o médico e chefe do departamento ético-legal da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (CMMG) defende a criação de programas de combate ao assédio moral e sexual dentro de instituições médicas, além da ampliação de políticas públicas que defendam as vítimas.

"É mandatório que hospitais e instituições de saúde implementem programas de efetivo combate ao assédio moral e sexual. Isso inclui a criação de políticas claras de denúncia e investigação, programas de treinamento para prevenção, suporte para vítimas e responsabilização dos agressores. O poder público pode contribuir para isso, quer seja em campanhas educativas, quer seja na fiscalização, investigação e punição. Retomo a importância de se ensinar o conteúdo ético-legal na formação médica. Valores e virtudes, integridade e o respeito são fundamentais em qualquer profissão, mas, na medicina, onde a confiança é um pilar central, é vital que as pessoas sejam tratadas com o respeito e a dignidade que merecem”

Leia mais:

Leia nota na íntegra do MEC e CFM:

Ministério da Educação:

“Em relação ao episódio que envolveu estudantes do curso de medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa), durante partida de vôlei feminino que fazia parte das competições da Intermed, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres), já notificou a instituição para apurar quais as providências tomadas pela Unisa em relação aos fatos ocorridos, sob pena de abertura de procedimento de supervisão e adoção de medidas disciplinares”.

Conselho Federal de Medicina:

“O Conselho Federal de Medicina repudia atos desse tipo, que configuram situações de violência e assédio. Essas situações devem ser investigadas e os responsáveis penalizados.

No entanto, é importante esclarecer um ponto: até onde sabemos, esses indivíduos ainda são estudantes de medicina, ou seja, não são médicos. Sendo assim, eles não são alcançados pelos conselhos de medicina.

Portanto, cabe às instituições de ensino, às autoridades da área da educação e aos órgãos de justiça e segurança pública a apuração dos fatos, com a adoção das medidas cabíveis”.

Leia mais