Após ser considerado o um dos suplementos mais eficazes para ganho de força e massa muscular, a
Por quase três décadas, a
“A ciência foi mostrando que o cérebro também depende de energia rápida para executar funções como memória e concentração”, explica o nutrólogo Diogo Toledo, coordenador do Departamento de Nutrologia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Estudo Alemão
O tema ganhou destaque em 2024, com a publicação de um estudo alemão na revista Scientific Reports. Nele, 15 voluntários privados de sono por 21 horas receberam uma dose única e alta de creatina monoidratada. O resultado: pequenas melhoras em memória, tempo de reação e raciocínio, acompanhadas de alterações no metabolismo energético cerebral.
A repercussão foi imediata e, em muitos casos, exagerada. Nas redes sociais, o achado foi simplificado como “a creatina que turbina o cérebro”. Poucos mencionaram que o estudo era pequeno, de curta duração e realizado em condições extremas.
“A promessa de um pó incolor e insípido capaz de melhorar a força física e mental é tentadora, mas ainda falta base científica sólida”, observa o nutricionista Igor Eckert, cofundador da plataforma Reviews, que analisa estudos científicos.
Autor de uma revisão crítica publicada no Journal of Nutrition, Eckert avalia que parte da empolgação recente reflete viés de confirmação e relaxamento nos critérios de evidência científica.
Pré-treino e creatina fazem mal a saúde?
Energia para os músculos
Produzida naturalmente pelo corpo a partir de três aminoácidos (glicina, arginina e metionina), a creatina é sintetizada no fígado, nos rins e no pâncreas. Também está presente em carnes e peixes. Sua principal função é armazenar fosfatos de alta energia, que ajudam as células a repor rapidamente o ATP (adenosina trifosfato), combustível essencial para contrações musculares intensas.
A produção endógena cobre cerca de 70% a 80% da necessidade diária. O restante vem da alimentação, mas, para atingir o equivalente a uma única dose de suplemento (3 a 5 gramas), seria necessário consumir mais de um quilo de carne bovina por dia.
“É como se o corpo fosse um carro que fabrica parte da própria gasolina, mas nunca consegue encher o tanque por completo”, compara Eckert.
Nos músculos, a creatina atua como um tampon energético, prolongando o esforço em atividades de alta intensidade. “Para quem treina regularmente, suplementar costuma ser uma boa decisão”, afirma o nutricionista. “Os maiores benefícios aparecem em esportes que exigem força explosiva, como levantamento de peso e corridas curtas.”
Do músculo ao cérebro
O efeito físico da creatina é amplamente reconhecido. Desde os anos 1990, ensaios clínicos apontam ganhos consistentes de força e massa magra. Um estudo recente, publicado em 2025 no periódico Nutrients, mostrou um aumento médio de 0,5 kg de massa magra após uma semana de suplementação com 5 gramas diárias.
Segundo o Journal of the International Society of Sports Nutrition, a creatina é um dos suplementos mais eficazes e seguros disponíveis, com ganhos médios de 5% a 15% em força e potência muscular.
“No cérebro, ela exerce função semelhante à dos músculos, participando da liberação de ATP, a principal moeda energética das células”, explica Eckert. A partir dessa lógica, surgiram estudos para investigar se o cérebro também se beneficiaria da suplementação.
As pesquisas, no entanto, são inconsistentes. “São cerca de 25 estudos até hoje”, conta Eckert. “Alguns mostram melhora em tarefas cognitivas, especialmente em idosos ou pessoas privadas de sono; outros, não. E mesmo dentro de um mesmo trabalho, às vezes há ganho em um teste e nenhum em outro”, completa.
O que se sabe até agora?
Um dos estudos mais recentes, publicado em 2023 na Nutrition Reviews, avaliou 90 adultos saudáveis que tomaram 5 gramas de creatina por dia durante seis semanas. Eles foram submetidos a situações de estresse agudo e apresentaram desempenho ligeiramente melhor em testes de memória e atenção, mas sem diferenças significativas em marcadores fisiológicos de estresse, como níveis de cortisol.
Os autores sugerem que a creatina pode exercer um efeito compensatório em momentos de sobrecarga mental, sem alterar o desempenho em condições normais. “Mas ainda não sabemos o que um ganho de 0,5 ponto em um teste de memória realmente significa na vida real”, pondera Eckert.
Toledo concorda. Segundo ele, os indícios de benefício cognitivo se restringem a situações de privação de sono, fadiga mental ou envelhecimento. “A creatina parece atuar como um suporte energético, não como um estimulante. Não transforma ninguém em um gênio nem age como um nootrópico milagroso”, afirma.
Sem resultados para doenças neurológicas
As expectativas diminuem ainda mais quando o foco são doenças do sistema nervoso. Ensaios clínicos de grande porte em condições como Parkinson, Huntington e esclerose lateral amiotrófica (ELA) não mostraram qualquer benefício.
O maior deles, publicado em 2015 no JAMA, acompanhou 1.741 pessoas com Parkinson por cinco anos e foi interrompido por futilidade, após não observar efeito algum na progressão da doença.
“Esses estudos foram o prego no caixão da hipótese de que a creatina teria papel terapêutico relevante nessas condições”, afirma Eckert. “Mesmo assim, alguns trabalhos mais recentes, geralmente ligados à indústria, continuam defendendo a plausibilidade da ideia, sem reconhecer as evidências negativas.”
Em 2025, um pequeno estudo-piloto da Universidade do Kansas testou doses altas de creatina em 20 pacientes com Alzheimer leve. Houve boa tolerabilidade e aumento de 11% nos níveis cerebrais da substância, mas sem comprovação de eficácia clínica.
Seguro, mas não milagroso
A creatina está entre os suplementos mais estudados em termos de segurança. “Dentro das doses recomendadas, não há evidências de toxicidade relevante para rins ou fígado em pessoas saudáveis”, afirma Toledo. “Mas indivíduos com doenças renais ou hepáticas devem ser avaliados antes de usar”, acrescenta.
Ainda assim, ele alerta que exagerar não adianta. Segundo ele, o corpo possui um limite de saturação, e o excesso é eliminado. “Há também diferenças individuais: cada pessoa absorve e armazena a substância de forma distinta”, complementa Eckert.
Os especialistas defendem mais estudos de longo prazo e com amostras maiores para esclarecer o papel da creatina fora do contexto esportivo. “Precisamos entender quem realmente se beneficia, quais doses são ideais e como ela se encaixa em um cuidado integrado, junto a outras estratégias”, explica Toledo.
Eckert faz um alerta final: “O risco não é apenas gastar dinheiro com algo que talvez não funcione, mas também deixar de investigar causas reais para problemas cognitivos persistentes.”
*Com Agências