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Papa brincava sobre ‘cachacinha’ e defendia população LGBT, diz cardeal

Responsável por conduzir a Arquidiocese de Manaus e primeiro cardeal da região amazônica, Dom Leonardo Steiner participará pela primeira vez de um Conclave

Para o cardeal Dom Leonardo, o maior legado de Francisco é a centralidade da misericórdia como prática de fé

Nomeado por Francisco como cardeal, dom Leonardo Steiner se prepara para, pela primeira vez, ajudar a escolher o novo papa. Ele carrega na memória os encontros com o argentino, que morreu na última segunda-feira (21), aos 88 anos.

Acolhedor, bem-humorado e comprometido com a inclusão: é assim que Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, define o Papa Francisco. Em entrevista à Folha de S.Paulo, o cardeal — que participará pela primeira vez de um conclave — destacou a coragem do pontífice ao defender o respeito à população LGBTQIAPN+. Para ele, uma das maiores ousadias de Francisco foi afirmar que “homossexuais e trans são filhos e filhas de Deus”, abrindo espaço na Igreja para o acolhimento e a valorização da dignidade humana, especialmente daqueles historicamente marginalizados.

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Dom Leonardo também recorda o bom humor do papa, presente até nas situações mais formais. “Sempre que nos encontrávamos, ele fazia alguma brincadeira. Uma vez perguntou: ‘Vocês trouxeram uma cachacinha?’. A gente não esperava ouvir isso de um papa”, contou, rindo. “Ele sabia cantarolar a marchinha ‘Cachaça não é água’ e já disse que Pelé era maior que Maradona e Messi. Era um argentino que soube ser um grande papa.”

Para o cardeal, o maior legado de Francisco é a centralidade da misericórdia como prática de fé. “Ele viveu o Evangelho de Mateus: vestir os nus, dar de comer aos famintos, visitar os doentes, acolher os peregrinos. A misericórdia, para ele, era transformação social e espiritual.”

Essa transformação também se refletiu na estrutura da Igreja. O papa argentino trabalhou para internacionalizar o colégio de cardeais, ampliando a representatividade de regiões antes periféricas no Vaticano. “Hoje somos 135 cardeais votantes, com realidades muito diferentes. Isso mostra uma Igreja que não é uma organização, mas um sinal do Reino de Deus”, pontua.

Sobre o futuro da Igreja, Dom Leonardo acredita que o mais importante não é o perfil conservador ou progressista do sucessor de Francisco, mas a sensibilidade para ouvir o mundo. “Talvez o novo papa venha da África ou da Ásia. Isso não importa tanto quanto a disposição de entender que a Igreja é feita por todos.”

Mesmo diante da perda de fiéis católicos, o cardeal alerta para outra questão, o avanço da secularização, isto é, o abandono dos preceitos culturais que se apoiam na religiosidade. “Devemos nos preocupar mais com as pessoas que se dizem sem religião. Vivemos num mundo técnico e virtual, que afasta da dimensão da fé. Mas isso não significa que não possa haver retorno. Em Manaus, vimos muitos adultos sendo batizados nesta Páscoa. O importante é a qualidade da fé.”

Francisco também será lembrado por sua liderança firme diante de crises morais. “Ele enfrentou como ninguém as denúncias de abuso sexual no clero. Foi mais longe do que qualquer outro setor da sociedade. Não se trata apenas de moral, mas de dignidade humana.”

Ao comentar o impacto do papa sobre a pauta ambiental, Dom Leonardo é direto: “Graças a ele, cresceu a consciência de que é preciso cuidar da casa comum. Isso é sem volta. Claro que há resistência — os que pensam só no lucro, no garimpo, no ouro. Mas o caminho é esse”.

Francisco também marcou posição diante da política internacional, especialmente na questão migratória. “Ele não confrontava pessoas, mas políticas que excluíam. Ele dizia: acolher e integrar. Lembrava que, nas Américas, com exceção dos povos indígenas, todos somos migrantes.”

Ao se despedir do pontífice que o tornou cardeal, Dom Leonardo o define em poucas palavras: “Francisco foi um papa do encontro. Da escuta, da esperança, da coragem. E, sobretudo, do acolhimento.”

Izabella Gomes é estagiária na Itatiaia, atuando no setor de Jornalismo Digital, com foco na editoria de Cidades. Atualmente, é graduanda em Jornalismo pela PUC Minas