Uma região que há mais de 150 anos produz vinhos, mas não era reconhecida por isso, surge no cenário nacional com destaque. A Campanha Gaúcha, no oeste do Rio Grande do Sul, uma área de pampas que faz fronteira com o Uruguai e a Argentina, tem mostrado seus vinhos de qualidade e a retomada de tradições, com a ajuda da tecnologia.
A Campanha Gaúcha conseguiu em 2020 o selo de indicação geográfica, na modalidade indicação de procedência (IP), que atesta que o local é reconhecido pela qualidade de seus vinhos. Hoje, 20 produtores fazem parte da Associação Vinhos da Campanha, que reúne quem conseguiu atingir os padrões para usar o selo da IP.
A vinícola Guatambu, em Dom Pedrito, é uma das que conseguiu o selo, seguindo o caminho de investir em qualidade, não quantidade. Com isso, se enquadra como uma vinícola boutique, com vários vinhos premiados. A diretora técnica, Gabriela Hermann Pötter, explica que os cachos de uvas são selecionados já no campo, passam por câmara fria para garantir a qualidade e isso só é possível por trabalhar com uma pequena escala. “Nosso foco é justamente ter pequenos e limitados lotes, com garrafas numeradas”, expolicou.
A venda de vinhos tintos, brancos, rosés e espumantes da Guatambu teve um salto durante a pandemia. A vinícola viu aumentar em 60% a demanda. Um crescimento visto também por outros produtores, como Rene Ormazabal Moura, coproprietário da Bodega Sossego. “Na pandemia houve bloqueio de fronteiras, o dólar ficou alto, então, as pessoas acabaram tendo acesso ao vinho brasileiro, quase que forçado, porque era o que tinha, mas tiveram uma surpresa muito agradável”, avaliou.
Apesar de estar despontando no cenário nacional agora, a região foi há mais de um século, destaque na área. A primeira vinícola registrada no país, a J. Marimon & Filhos, ficava na Campanha Gaúcha, no município de Candiota. Há registros de 1923 na imprensa local de que vinhos receberam medalha de ouro em competições. Hoje a vinícola não existe mais, ficaram as ruínas para relembrar um passado de glória que volta a ser vislumbrado.
A poucos quilômetros de onde funcionava a J. Marimon & Filhos, hoje uma outra vinícola se destaca: a Batalha Vinhas & Vinhos. O nome remete ao local onde foi travada a Batalha do Seival, em 1836, onde os revoltosos da Revolução Farroupilha venceram o exército imperial. A propriedade, de 29 hectares, produz vinhos premiados e também com selo de IP. Giovani Peres, sócio da vinícola, explica que a empresa também tem uma parceria com produtores de uvas. “O produtor traz a uva e nós produzimos o vinho, isso é uma característica muito forte na Campanha Gaúcha”, contou.
A vinícola também abriu as portas para o turismo. Além de contar a história do local, os visitantes podem degustar os vinhos e um autêntico churrasco gaúcho. Essa estratégia tem sido uma das alternativas para fomentar a difusão da qualidade dos vinhos da região por vários produtores que possuem o selo de IP.
A vinícola Campos de Cima, em Itaqui, também optou por esse caminho. Na propriedade, o turista pode tanto fazer a visita guiada com uma degustação dos vinhos no final do passeio, quanto hospedar-se na Wine House. Segundo o presidente da Associação, que também é diretor comercial da empresa, Pedro Miguel Lopes Albergaria Candelária, o turismo é algo que tem crescido bastante entre os produtores da região.
Ciência e experiência
Para que a região chegasse a esse nível de qualidade, a ciência e a experiência deram as mãos. Diversas vinícolas contam com laboratórios para análise desde a uva antes de ser colhida até a fase de envasamento. Mas é a Universidade Federal do Pampa (Unipampa) que ficou com a responsabilidade de avaliar os vinhos que recebem o selo de IP da Campanha Gaúcha.
“Essa análise sensorial é feita na Universidade e os vinhos que têm qualidade garantida são indicados para receber o selo, já vinhos que não tem o caráter mínimo de aceitação do produto, eles são retirados, são vinhos que podem ser comercializados, mas sem o selo da indicação de procedência”, explicou o professor de enologia, Marcos Gabbardo. Ele é um dos responsáveis pelo vinhedo demonstrativo, onde há 72 variedades de uva, que auxilia nos estudos de melhores diversidades para a região.
A Unipampa também oferece o único curso de bacharelado em Enologia do país, atraindo estudantes de todo o Brasil e também de países vizinhos, como o Uruguai, onde esse tipo de curso é limitado à área técnica. A reitora do campus de Dom Pedrito, Nádia Bucco, disse que foi um desafio criar a faculdade de Enologia numa época em que a cadeia produtiva da uva e do vinho estava apenas começando na região. “Hoje a demanda no mercado é maior do que nós podemos entregar de profissionais”.
Para o professor Gabbardo é recompensante o trabalho de transmitir para os mais jovens as experiências e incentivá-los a trabalhar com a uva na região. “A minha escolha de vida é trabalhar o vinho brasileiro, é desenvolver esse produto. E eu sou o que sou graças ao vinho, graças à produção de uva aqui no Brasil. Então, levar isso para outras gerações é muito importante”, concluiu.