“Da janela lateral do quarto de dormir”. Esse verso abre uma das canções mais emblemáticas e queridas pelos mineiros. “Paisagem da Janela”, composição de Fernando Brant e Lô Borges, é uma obra que sintetiza o espírito do Clube da Esquina e a sensibilidade da música mineira. Como toda boa expressão da arte de Minas, ela carrega mitos e histórias que atravessam três cidades de grande importância para o estado: Belo Horizonte, Diamantina e Ouro Preto.
Afinal, “Vejo uma igreja, um sinal de glória” e “conheci as torres e os cemitérios” são versos que, para muitos, remetem às cidades históricas de Minas Gerais. Ao mesmo tempo, ”cores mórbidas” e “homens sórdidos” faz alusão ao Regime Militar, que vivia seu pior momento na era dos Anos de Chumbo do Governo Médici, que perdurou de 1968 e 1974.
“Paisagem da Janela” é uma balada folk alegre, gravada no disco Clube da Esquina, de 1972. A versão original conta com Lô Borges cantando ao piano, Beto Guedes tocando baixo, Tavito e Nelson Ângelo nas guitarras, a bateria é com Rubinho Batera e o coro é formado por Beto Guedes e Milton Nascimento.
Essa é uma das canções mais regravadas da obra de Lô Borges. Em 1983, Milton Nascimento lançou uma versão ao vivo, e, alguns anos depois, em 1986, Beto Guedes também a gravou. A música integra o repertório de três dos grandes nomes do Clube da Esquina. As polêmicas e os mistérios que a cercam estão ligados a questões da arte — e, mais especificamente, ao universo das canções.
Paisagem de Ouro Preto
Janela da República Consulado, em Ouro Preto
Em Ouro Preto, há a história de que Lô Borges teria escrito “Paisagem da Janela” na República Consulado, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). A casa, que abriga sete estudantes, repousa na Rua das Mercês, ladeada por ladeiras e silêncios antigos. Dizem alguns moradores que a canção nasceu ali, inspirada na vista de uma das janelas da residência — de onde se revelam as torres da Igreja das Mercês e, ao fundo, o cemitério que completa a paisagem.
“Já vimos muitos homens e velórios nela”, brinca Carlos Borges, estudante de Engenharia Urbana na UFOP e morador da república.
“Contam uma história para a gente que o pessoal do Clube da Esquina, sempre respirando a mineiridade, buscava retratar a paisagem que via. Alguns falam que foi em Diamantina, outros que foi em BH, outros contam que foi essa janela. A gente fala na ideia de que foi composta aqui pela paisagem. Mas se, porventura não for, o Lô Borges soube interpretar, principalmente, o espírito do sentimento de ser mineiro ", conta o estudante.
A república incorporou a versão da história e resolveram homenagear a paisagem vista da casa no convite de aniversário de 89 anos da residência. A janela, inclusive, se tornou ponto turístico da cidade.
“Acho que essa é uma das coisas mais fotografadas na região. Direto e reto bate algum turista pedindo para tirar foto da janela, ainda mais porque os guias turísticos contam para todo mundo. Aí é uma via sacra o dia inteiro aqui em casa. O pessoal tirando foto, comentando, é bacana demais”, complementa Borges.
Convite do aniversário de 89 anos da República Consulado, de Ouro Preto
Paisagem de Diamantina
A versão de que “Paisagem da Janela” foi composta em Diamantina surgiu em 1996, com Márcio Borges, irmão de Lô. Ele foi a primeira pessoa que falou da composição da música, no livro “Os sonhos não envelhecem”. O músico conta que estava em Diamantina com Fernando, Milton e Lô. Eles se encontraram com o ex-presidente Juscelino Kubitschek na ocasião.
Durante a viagem, Fernando teria mostrado a letra da canção que Lô lhe enviara para uma parceria. Márcio relata, em seu livro, que acredita ter sido a vista da janela da pensão onde se hospedaram a inspiração de Brant. Do quarto do jornalista e escritor, avistavam-se as torres das igrejas de Diamantina.
Leia o trecho retirado do livro “Os sonhos não envelhecem”, de Márcio Borges, publicado em 1996:
“Antes das gravações do álbum duplo, voltamos a Diamantina. A revista O Cruzeiro queria realizar uma reportagem conosco e lá estávamos, sempre acompanhados pelo carro de reportagem da revista {...} Fomos hospedados num hotel colonial, muito bonito e bem-arrumado. Meu quarto ficava numa ala do velho casarão que dava para a praça principal, enquanto o de Fernando tinha janelas que se abriam para uma igreja e o cemitério da cidade. Com toda certeza isso foi a inspiração que teve para nos mostrar, certa manhã, à mesa onde fazíamos o desjejum, a letra que havia escrito ali, durante a noite, sobre um tema que Lô lhe passara: Paisagem da Janela.”
Entretanto, a versão do Márcio Borges teria sido apenas uma impressão ao ouvir pela primeira vez a música, que tem a letra escrita por Fernando Brant e a melodia composta por Lô.
“A letra é só do Fernando e a melodia só do Lô. Como em todas as outras letras que compôs na vida, o Fernando recebeu a melodia pronta do Lô e fez a letra em cima dela. Que a letra foi escrita em BH, eu tenho certeza. Sobre a melodia composta pelo Lô não sei muito... Mas nunca ouvi uma versão de que tivesse sido composta em Ouro Perto ou Diamantina”, conta Isabel Brant, filha do jornalista, letrista e escritor.
Paisagem da Rua Grão Pará
Em entrevista à Folha de São Paulo, em 2002, Fernand Brant revela onde compôs a letra de “Paisagem da Janela”. Ele a escreveu no escritório do seu pai, localizado no segundo andar da casa onde eles moravam, na Rua Grão Pará, no Bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte. Da janela, ele via as torres da Igreja de Lourdes.
“Compus essa música quando ainda morava na casa dos meus pais, em Belo Horizonte. Da janela podia ver a igreja de Lourdes, mas hoje os prédios escondem tudo”, afirmou Brant.
Lô Borges, por sua vez, nunca deu uma entrevista confirmando alguma versão ou dizendo onde ele teria composto a melodia.
As polêmicas e os mistérios têm a ver com uma questão da arte e mais especificamente das canções. É o que defende Bruno Viveiros, doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor dos livros “Som Imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina (Editora UFMG, 2009)” e “Clube da Esquina - Trajetória Musical (Oca Editorial/ Azougue Press, 2024)”.
“O que Fernando Brandt pensou, escreveu, onde estava, faz parte da história da canção. A partir do momento em que ela é gravada em disco, que ela entra no rádio e passa a ser ouvida e reinterpretada pelos ouvintes, ela ganha o mundo e cada um faz a sua própria leitura da canção. Essas reinterpretações todas só demonstram a riqueza de uma canção e a capacidade que ela tem de influenciar os nossos sonhos, nossas visões coletivas e individuais”, afirma.
Um novo olhar
Durante a pandemia, em 2020, Lô Borges convidou seus seguidores nas redes sociais para fazer uma gravação de “Paisagem da Janela”. Era um momento em que todos estavam confinados dentro de casa, olhando o mundo pela janela. Foi lançado um clipe com, pelo menos, 25 gravações de diferentes lugares de Minas Gerais, do Brasil e do mundo.
“Em cada contexto, a canção será lida de uma maneira. Eu como ouvinte me aproprio da canção e ela fará parte do meu mundo a partir da maneira como eu a interpreto, independente da versão do letrista e do melodista. Essa história demonstra o alcance e o poder dessa obra universal do Lô Borges e dos seus parceiros”, diz Viveiros.
Morte de Lô Borges
O cantor e compositor Lô Borges, um dos fundadores do famoso movimento Clube da Esquina,
Salomão Borges Filho, conhecido no meio artístico apenas como Lô Borges, nasceu na capital mineira em 10 de janeiro de 1952 e se consagrou, no decorrer dos anos, como um dos principais nomes da Música Popular Brasileira (MPB). Ao lado de
Fernando Brant, por sua vez, faleceu em junho de 2015, vítima de complicações decorrentes de um transplante de fígado.