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Quando o ar curava

No começo do século XX, enquanto as grandes capitais brasileiras sofriam com epidemias, a jovem capital mineira oferecia algo raro: clima

Antigo sanatório em Belo Horizonte

Belo Horizonte já foi vendida ao Brasil como uma cidade que curava. Alta, ensolarada, cercada de montanhas e atravessada por ventos secos, ela carregava o selo da salubridade. No começo do século XX, enquanto as grandes capitais brasileiras sofriam com epidemias de febre amarela, peste bubônica e varíola, a jovem capital mineira oferecia algo raro: clima. E foi com esse argumento que a cidade passou a atrair pacientes em busca de um alívio para a doença mais temida da época — a tuberculose.

Sem cura medicamentosa até meados dos anos 1940, a tísica era tratada com repouso, ar puro e sol. E Belo Horizonte parecia o lugar ideal para isso. Com apoio de médicos influentes, como Hugo Werneck, Samuel Libânio e Alberto Cavalcanti, a cidade se transformou em destino terapêutico. Os doentes vinham de trem, com suas malas e seus pulmões comprometidos, em busca de fôlego. Muitos chegavam sem diagnóstico, sem rede de apoio, sem volta.

A resposta institucional veio em forma de sanatórios. Cada um deles moldou um pedaço da cidade.

O primeiro foi o Hospital São Lucas, criado por Hugo Werneck em 1922, no bairro Santa Efigênia. Foi o único sanatório central, integrado à Santa Casa. O bairro se estruturou como polo de saúde. Em volta, surgiram pensões sanitárias, hospedarias e clínicas — cenário que ainda hoje justifica o nome “região hospitalar”.

Em 1928, no alto da zona Oeste, nasceu o Sanatório dos Proletários, no Morro das Pedras. De adobe, com horta, capela e oficinas de laborterapia, ele atendia operários pobres e foi mantido por doações populares e depois por religiosas. Hoje, o local abriga o Hospital Madre Teresa. O bairro que o cerca herdou o nome e parte da lógica de isolamento.

Logo depois, em 1929, foi erguido o Sanatório Belo Horizonte, na então Rua Emboabas, atual bairro Santo Agostinho. Com três andares, elevador, solário e varandas amplas, funcionava quase como um hotel de clima. Atendia comerciários, com convênios da associação de classe. Foi demolido décadas depois, e em seu lugar nasceu o Parque Rosinha Cadar — um respiro verde onde antes se tratava a febre.

Nos anos 1930, na antiga Fazenda Pastinho, surgiu o Sanatório Minas Gerais. Idealizado por Alberto Cavalcanti, contava com pavilhões separados, laborterapia e regime disciplinar. Em 1947, passou a se chamar Hospital Alberto Cavalcanti. O bairro que se consolidou ao redor ganhou o nome de Padre Eustáquio. Muitas casas do entorno ainda preservam varandas voltadas ao norte, projetadas para aproveitar a ventilação cruzada.

Em 1944, foi fundado o Hospital da Baleia, entre a mata e a altitude do bairro Saudade. Criado para receber crianças sãs, filhas de doentes, operava como hospital e preventório. Com seus pavilhões isolados e sua localização estratégica, o hospital permanece em funcionamento até hoje. E o bairro, que cresceu ao redor, carrega até o nome da serra onde tudo começou.

Na década seguinte, o Estado construiu o Sanatório Eduardo de Menezes, no Barreiro. Isolado, recebia os casos mais graves. O entorno, antes vazio, ganhou ruas, escola técnica, comércio e infraestrutura. O hospital continua no mesmo local, especializado em doenças pulmonares. A tuberculose saiu das manchetes, não do mapa.

Cada um desses lugares foi parte de uma tentativa de vencer a doença pela arquitetura, pelo clima, pelo espaço. Onde havia repouso, nasceu bairro. Onde havia sanatório, cresceu vizinhança. Muitos dos pacientes que chegaram nunca voltaram para suas cidades. Muitos bairros que existem hoje nasceram da necessidade de acolhê-los.

Hoje, a ansiedade tomou o lugar da febre. A medicina mudou. Os prédios também. Mas a memória está nas ruas largas, nas varandas ao norte, nas clínicas discretas, nos nomes dos bairros. Belo Horizonte também foi feita de doenças. E da esperança de superá-las. Isso também é a cara da cidade.

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Gabriel Sousa Marques de Azevedo é advogado, empresário, jornalista, professor, publicitário, pós-graduado em competitividade global pela Georgetown University e Mestre em Cidades pela London School Of Economics.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.