“Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança” (Gn 1,26). Por essa palavra o texto bíblico indica que se deu a criação da humanidade. Nesse relato, cheio de símbolos, o que se quer indicar é que cada ser humano é, por sua inteligência, por sua vontade, por sua sensibilidade, um reflexo da Glória de Deus. Ao utilizar o termo “imagem”, o Gênesis alude ao fato de que o ser humano expressa o que Deus é, se constitui como uma representação visível Sua. Por “semelhança”, o Gênesis alude ao fato que o ser humano deve agir, por analogia, do mesmo modo como age o Deus, que é bom.
Se YHWH (o Senhor) “cria” realidades por sua sabedoria e bondade, o ser humano “fabrica” coisas por ímpeto de sobrevivência, por inquietude e poesia, por necessidade.... Não nascemos prontos; estamos sempre por fazer. Brincamos, aspiramos e poetizamos. Somos seres à beira do abismo, dançando e sonhando com o amor... Deus cria, porque tudo sabe e tudo pode. Nós fabricamos coisas por causa de nosso desassossego: somos deuses (Sl 8), inventando e aspirando ao infinito, somos, por nossa natureza mortal, pó e cinza (Gn3).
Fato é: essa nossa “brincadeira de ser Deus” está, agora, levada máxima potência com o desenvolvimento vertiginoso da I.A (Inteligência Artificial). Estávamos todos fornecendo dados, povoando a Internet de informações sobre nós, sem ter a noção de que nossas interações com as máquinas dariam à luz, tão rapidamente, a fenômenos como a I.A generativa ou a ferramentas como o Veo 3 da Google, com suas imagens hiper-realistas.
Rompemos, nestes últimos dias, de modo definitivo, quando da divulgação dessas tecnologias, com os limites sólidos e, até “anteontem”, intransponíveis do que significa a produção e fluxo o de conteúdo, do que são direitos autorais, de qual a relação consolidada, desde o início dos registros audiovisuais, entre “imagem” e “verdade”. Uma foto, um áudio, um vídeo agora já não servem mais como prova. Sim, já sabíamos que o advento das Redes Sociais, a hegemonia das bigtechs havia implodido com as noções clássicas do que é um “fato”, uma “informação”. Isso dando lugar à compreensão de que, na verdade, o que existem são “narrativas”. Todavia, agora, podemos dizer, de fato, que estamos numa era do simulacro!
Nós, os seres humanos, meio pó, meio demônios, meio anjos, criamos uma realidade paralela (ou seria alternativa?). Nessa, o que passa a ter muito valor o viés, a aparência, a encenação, a performance. Em países como o Brasil, no qual nós nos digitalizamos antes de aprendermos a ler e a interpretar fatos de modo crítico e com senso de orientação histórica, as consequências podem ser catastróficas. Quem julgou que as eleições passadas foram difíceis em decorrência das fake news em grupos de WhatsApp e das “cadeiradas”, prepare-se para a confusão criada pela I.A, a qual torna, com suas imagens hiper-realistas, irrelevante a diferença entre o real e a ficção. Isso para não dizer do que nos aguarda com a próxima outra revolução que será a da biotecnologia. Essa na qual o conhecimento científico passa a usado em larga escala para manipular organismos vivos...
Criamos (fabricamos) a I.A segundo nossa “imagem e semelhança”. A questão é: diferente de Deus, que é bondoso e sábio, o homem que serve de molde para essas novas “máquinas” está desfigurado. Há grandes riscos de que as ferramentas que estamos produzindo, reproduzam, em seu uso, nossos preconceitos, nossa tendência à exclusão, nosso fetiche pelo ódio e pela belicosidade, nosso desafeto sintomático.
É fato: o cenário a frente não é dos melhores. Nosso mundo está, como se diz: frágil, ansioso, não-linear, incompreensível. Resta-nos, então, deixar o pessimismo para dias melhores. Deus nos dê olhos atentos, lucidez e vigilância constante...