Ouvindo...

Não consigo perdoar

Perdão não é esquecimento, o nome disso é amnésia. Perdão é se recordar com cada vez menos dor, menos ressentimento, menos vínculo e menos dívida.

Um dos mais belos diferenciais da fé cristã é a noção do perdão. Em apreços e avessos, o cristianismo traz consigo uma bela noção de reconciliação. Na pessoa de Jesus se restabelece um laço de amizade entre Deus e os homens e dos seres humanos entre si (Ef 2, 14-16). Uma das exigências essenciais que o Mestre faz aos discípulos é “amar os inimigos” (Mt 5,44) e perdoar até 70x7 (Mt 18,22).

Podemos nos perguntar, “tá, mas e como é que a gente faz isso”? Como é que a gente lida com o fato de que alguém nos ofendeu e isso continua a nos ferir, ou a pessoa saiu por cima, ou não está nem aí para isso? E pior, como a gente faz se o “animal ruminante” consegue, ainda, se dar bem por conta disso?

Bom, o primeiro passo, diante do “ressentimento” que uma ofensa nos causa, é entender onde estão as “dívidas”. Para superar uma mágoa é preciso atravessar a dor, o luto pela imagem do outro que se desfez em nós, é preciso “ir atrás” das relações mais primitivas (as figuras paternas e maternas, talvez) e ver onde a ofensa de “hoje” atualizou os lugares de desamparo, de negligência, de dor, de abandono “de ontem”.

Dar nome ao que aconteceu é um passo muito importante! Se foi “traição” é preciso dizer, elaborar isso. O perdão requer localizar a dor, que se inscreve na alma. Aquela que fica “à flor da pele”. O movimento é exatamente como fazemos com as crianças. Quando essas machucam, indagamos: “deixa eu ver, me mostra onde dói”.

Perdão não é esquecimento, o nome disso é amnésia. Perdão é se recordar com cada vez menos dor, menos ressentimento, menos vínculo e menos dívida. Perdoar não tem a ver, também, com “dar” nada ao outro, mas é antes “dar” algo a si. Quem perdoa se dá paz. Quem perdoa deixa de conceder, na própria vida, lugar de honra a quem lhe ofendeu.

Leia também

É preciso sentir, atravessar a própria frustração para ser capaz de perdoar. Quem deseja perdoa deve comparecer diante do fato de que amor e afeto concedidos não são investimentos, são apostas. Aqueles a quem se dirige o nosso investimento narcísico (por mais nobre que esse seja!) não têm “vínculos trabalhistas” com a nossa “empresa” ideal. O perdão vem do reconhecimento de qual parte, de qual responsabilidade que cada um de nós sempre tem na ofensa ocorrida.

Sim, isso mesmo! Diante do “sofrimento” nenhum de nós é passivo. Ou se é passivo, é um passivo agressivo. Quer dizer: em relações naufragadas sempre há, “acordos” unilaterais, sinais que por vezes ignoramos, idealizações. Ao falar de responsabilidade, não se trata de “punir a vítima”, mas nem longe é sobre isso! Às vezes a gente se encontra com pessoas terríveis, perversas, cínicas há situações até passíveis de justiça! Se trata, contudo, de não ignorar o fato de que: ser ofendido é inevitável, “confiar” não teve a ver com outro, assim como, “lamentar uma dor passada no presente significa criar outra dor e sofrer novamente” (Shakespeare).

Perdão, em última instância, requer a separação do ato. É preciso deixar no caminho os pesos, as médias que não são nossos, que são desnecessários. Isso traz, se não restituição, leveza! Quem perdoa concede a quem lhe fez mal a possibilidade de apresentar uma versão melhor de si mesmo. Perdoar é querer que o outro esteja bem. Inclusive, e ainda que seja: “bem, bem longe de si…”


Participe dos canais da Itatiaia:

Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.
Leia mais