“Eu não sabia. Eu não estava por dentro dessa lei. Eu fiquei sabendo quando eu cheguei aqui na casa de apoio. Eles me explicaram tudo certinho”. A lei a que grávida de três meses se refere é a entrega voluntária que permite a entrega do bebê para adoção após o parto. A entrega está prevista no Estatuto da Infância e da Juventude (ECA) e foi regulamentada há seis anos, mas ainda não é bem conhecida. A gestante que optou pela entrega voluntária não quer ser identificada.
Um dos principais desafios para facilitar a acesso do programa é capacitar a rede de atendimento, segundo desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e vice-presidente do Fórum Nacional dos Juízes Estados, Valéria Rodrigues.
“Eu acho que precisa primeiro conhecimento dos profissionais que atuam nesta área, ou seja, médicos de hospitais, quando a mãe vai fazer o exame de sangue e tem a notícia que está grávida, os hospitais têm que estar preparados para orientar. Se você não tem como orientar corretamente essa gestante, surgem dúvidas”, completa a desembargadora.
Quem também defende a capacitação dos profissionais e a ampliação da rede de atendimento é a diretora do Conselho Nacional de Justiça e do Sistema Nacional de Adoção, Isabely Mota.
“O treinamento dos atores que trabalham com as mulheres é um grande desafio. A gente tem que chegar em todo o Brasil, em todos os lugares, inclusive falando para o juiz como agir, como fazer se ele não tiver equipe, porque a gente fala de psicólogo, de assistente social, mas às vezes ele não tem esses profissionais à disposição. Então como ele faz nesses casos? Ele pode nomear um perito, todo esse protocolo está determinado no nosso manual do Conselho Nacional de Justiça”, explica Isabely Mota.
A infraestrutura é importante para que o Programada da Entrega voluntária atenda um perfil ainda mais vulnerável que são as gestantes vítimas de violência sexual.
O juiz da Vara Cível da Infância e da Juventude, José Honório de Rezende, relata que no caso de adolescentes menores de idade o atendimento precisa ser acompanhado pelos pais ou responsáveis. Mas há casos em que a gravidez decorreu de uma violência na família.
“Nesse caso, a decisão se torna mais complexa porque precisa se afastar o poder de decisão dos pais porque, além de violadores, foram omissos. Então a situação muda completamente”, completa o juiz.
Diante de uma gravidez indesejada, a rede de atendimento relata, que muitas mulheres relatam que se sentem sozinhas. Por isso, é importante que elas contem com uma rede de apoio capaz de atuar sem julgamento ou preconceito para evitar que a criança seja abandonada e para permitir que a mãe faça sua escolha, seja pela entrega voluntária ou para assumir a maternidade.
Tabus e preconceitos
A desembargadora Valéria Rodrigues defende a quebra de tabu e preconceitos, principalmente na própria rede de atendimentos. “Nós temos que primeiro trabalhar com a cabeça dos profissionais na quebra de tabus e preconceitos porque nós temos médicos que, às vezes, têm preconceitos e não repassam as informações sobre a lei para as gestantes”, alerta Valéria Rodrigues.
Nós conversamos com outra mulher que não quer ser identificada e afirma ter sofrido preconceito na maternidade ao contar que poderia entregar o bebê para adoção.
“Teve preconceito na questão da adoção, teve muito preconceito. Algumas pessoas tratavam alguns pacientes melhores do que eu ou deixavam de me atender. Também ficavam perguntando qual seria o nome do bebê e isso era difícil para mim”, relembra.
Na Casa de Apoio Bityah é rotina apresentar a entrega voluntária como alternativa para mulheres com gravidez indesejada e que pensam em interromper a gravidez. Segundo a assistente social, Cláudia Pinto Coelho, que faz o atendimento das mulheres, ouvir e repassar a informação correta é o mais importante, inclusive sobre os riscos de um aborto clandestino.
“A gente entende que ela não está sendo uma má porque quando as pessoas olham para ela reagem assim: ela não quer ser mãe, está na mulher ser mãe. E a maternagem não é isso. Ela é construída. A gente está aqui para cuidar dela e acolher, sem nenhum tipo de preconceito”, explica a assistente social.
Direito de desistir da entrega
É comum as mulheres que contam com uma rede de apoio desistirem de seguir com o protocolo para a entrega do bebê para adoção. Isabely Mota relata que os índices de desistência chegam a 50%. “Quando ela tem amparo, seja do poder judiciário, seja quando ela consegue ir para um abrigo, ela percebe que tem opções, que pode exercer o direito da entrega do bebê para adoção ou assumir que quer cuidar do filho”, afirma a diretora do CNJ.
Depois de assinar toda documentação para entrega do bebê para adoção, a mulher tem o prazo de 10 dias para decisão, sem a necessidade de apresentar nenhuma justificativa.
A mulher que afirmou ter sofrido preconceito na maternidade ao relatar o desejo de entregar o bebê para adoção afirma que a ajuda recebida na Casa de Apoio Bityah foi fundamental para desistir da decisão.
“Hoje eu sei o que é o aborto, eu sei sobre a entrega voluntária e sei sobre a escolha de ficar com o bebê, mesmo depois de tudo que eu passei, inclusive, ser vítima de um estupro e ficar grávida. Então eu posso afirmar que se eu tivesse entregado minha filha eu me arrependeria pelo resto da minha vida”, conclui.
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