Desde 1988, a Constituição deixa bem claro: todo mundo tem direito a ter o nome do pai e da mãe na certidão. Aliás, no Brasil, o reconhecimento de filiação é um direito absoluto, e não existe diferença entre os filhos nascidos do casamento ou de outras relações.
O Conselho Nacional de Justiça estima que 5,5 milhões de crianças brasileiras não tenham o nome do pai na certidão de nascimento. Só nos primeiros 10 meses deste ano, em Minas Gerais, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) contabilizou mais de 9 mil bebês que não foram registrados pelo pai, de um total de 193 mil - o que representa quase 5% das crianças nascidas em 2022.
“O direito ao reconhecimento materno ou paterno está ligado ao direito à vida, ao direito de pertencimento a um grupo familiar e, consequentemente, ao direito de ter uma história”, aponta a psicóloga clínica e social Dalcira Ferrão. Para ela, ter um sobrenome da família é ter a possibilidade de ser reconhecido como parte dela. “Desconhecer parte da sua história pode gerar vários sentimentos no filho: curiosidade, raiva, dúvidas, rejeição”, completa.
Esses sentimentos fizeram parte da infância e adolescência do policial militar Marcelino Castiglioni, 33. “Eu fui uma criança fruto dos anos 1990, e vivi sem o nome do meu pai por 12 ou 13 anos da minha vida. Por causa disso, eu enfrentei algum nível de desafio, embora eu não compreendesse o que exatamente estava acontecendo. Mas uma mãe solo não era tão bem vista assim naquela época”, conta.
Esses dados são reflexo de uma tendência histórica, e considerados tão relevantes que, em 2011, a própria justiça passou a encampar iniciativas voltadas para o reconhecimento de paternidade. Em Minas Gerais, um desses programas é o Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), do Tribunal de Justiça do Estado (TJMG), criado há 10 anos.
“O CRP foi criado em razão de uma determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), depois de um censo escolar que apurou, em 2011, que existiam milhões de crianças sem o nome do pai no registro de nascimento”, explica a coordenadora do CRP, juíza Maria Luiza de Andrade Rangel Pires. Foi nessa ocasião que o CNJ determinou que todos os Tribunais de Justiça do país adotassem medidas para reduzir estes números.
Desde 1992, uma lei federal obriga o judiciário a realizar a averiguação de paternidade nos casos em que as crianças não possuem o nome dos pais no registro. “Muitas vezes, quando esse procedimento chega nas mãos de um juiz do interior, por exemplo, o magistrado não tem muito o que fazer. Se uma carta é enviada para o endereço da mãe, e ela não responde, aquilo ali é arquivado. Então, o que se pretende, na verdade, no CRP, é dar efetividade a isso, fazendo com que as pessoas realmente entendam a importância desse reconhecimento”, analisa Pires.
Hoje, todos os bebês nascidos em Belo Horizonte e registrados sem o nome do pai são encaminhados diretamente ao CRP, que entra em contato com as famílias e tenta entender os motivos da ausência - tudo antes da abertura de um processo judicial.
“Tem várias mulheres, por exemplo, que não tiveram um único relacionamento - tiveram três, quatro, porque não estavam em uma situação estável, e realmente não sabem quem é o pai. Só que tem uma criança nisso aí, que tem o direito de conhecer a história dela por inteiro”, relata a juíza. No CRP, a ideia é que o atendimento seja o mais humanizado possível: “quando essa pessoa chega, ela se sente à vontade. Chamamos um pai, e fazemos o DNA. Se for negativo, não temos nenhum olhar de discriminação; muito pelo contrário, a gente acolhe e diz ‘não, ok, tem alguma outra pessoa? Então vamos fazer com essa outra’. E esse é o nosso papel”, diz.
Direito a ter pai
Além do TJMG, a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) também oferece o reconhecimento de paternidade pela via extrajudicial. Desde 2011, o órgão promove mutirões em todo o estado, realizando os trâmites para quem tem certeza da paternidade biológica e oferecendo exame de DNA gratuito a quem precisa.
A dona de casa Luana Cardoso é mãe de gêmeos, e buscou o serviço no último mutirão. “O pai não quis assumir, achou que as crianças não eram parecidas com ele, então não eram filhos dele, então eu acabei registrando eles sozinha. Eu não tinha condições de pagar nem um exame de DNA; como são gêmeos eu teria que pagar dois. Até cheguei a fazer alguns orçamentos, mas é um exame muito caro. Então, tendo o mutirão, que é de graça, eu agora consigo fazer”, conta.
Em 11 anos, os mutirões da defensoria realizaram mais de 60 mil atendimentos e 10 mil exames de DNA. A cada ano, em média, 70% deles têm resultado positivo. “É muito emocionante, principalmente no dia do mutirão”, conta a coordenadora da ação, Defensora Michelle Lopes Mascarenhas, Coordenadora de projetos e convênios da DPMG. “São encontros que, muitas vezes, não acontecem se a Defensoria não chamar essas partes aqui. Então, a gente tem que estar preparado para tudo. Quando acontecem essas coisas boas, de realmente a família se unir, o nosso sentimento é de gratidão e de dever cumprido, de que a Defensoria realmente cumpriu o seu papel de agente de transformação social”, ressalta.
Oficialmente, o papel do judiciário termina com a conclusão do processo de reconhecimento. Mas os profissionais que atuam nos programas, como a Maria Luiza de Andrade Rangel Pires, entendem que a questão vai muito além de garantir um sobrenome. “Não é tão incomum a gente ver aqui casos em que faz-se um reconhecimento de DNA, o resultado é positivo e o pai dá as costas para aquela criança, dizendo que sabe que é a obrigação, mas não quer o convívio. Aí, não sei o que é mais triste: a criança não ter o pai ou ser reconhecida desta forma”, pondera.
A ideia deve ser cultivar laços familiares e justificar o nome original do programa do CNJ: “Pai Presente” - como acabou ocorrendo com Marcelino Castiglioni. “Essa tentativa de mudar o meu nome era, na verdade, uma forma que nós tínhamos de tentar encontrar o meu pai, porque ele não era brasileiro, era uruguaio. Só que nós não conseguimos e o reconhecimento foi julgado à revelia, a partir do depoimento de várias testemunhas”, lembra o PM.
Pai e filho só se conhecerem anos mais tarde, graças a esse processo: “ele me encontrou nas redes sociais, porque eu adotei o sobrenome dele, e reconheceu a minha mãe nas fotos. Hoje, eu posso dizer que tenho um pai presente na minha vida. Nós, inclusive, conversamos com frequência”.
E direito a ser mãe
Um dos papéis do judiciário também é corrigir distorções na legislação que sobrou de um tempo em que o sistema patriarcal e machista impedia crianças de terem o nome da mãe em caso de separação.
A aposentada Idevalcir Pereira da Silva, 63, passou décadas sem poder ser, no papel, a mãe dos próprios filhos. Antes da nova Constituição, a paternidade era presumidamente do marido. Por isso, como ela não havia se separado formalmente do ex quando teve os filhos, o registro das crianças em nome dela impediria colocar o nome do verdadeiro pai das crianças na certidão. “Meu companheiro registrou as crianças quando elas nasceram, mas não colocou o meu nome. E eu não entendia porque isso aconteceu, eu era muito jovem. Para eles, era muito humilhante, as pessoas faziam até bullying com eles na escola”, conta da Silva.
“É importante ressaltar que os mutirões da Defensoria, apesar do nome, também atendem aos casos de reconhecimento de maternidade. Eles são muito mais raros, mas acontecem, e são mais comuns do que se possa pensar”, explica a defensora Michelle Lopes Mascarenhas.
Na casa de Idevalcir, houve uma tentativa de resolver a situação de forma particular, mas contratar um advogado estava fora das possibilidades financeiras da família. “Minha sobrinha viu na televisão uma reportagem falando sobre esse trabalho do mutirão, e a gente foi lá. O meu sonho era ter todos os meus filhos registrados com o meu nome”, confessa. Hoje, os três filhos da aposentada carregam, orgulhosamente, o nome da mãe nos documentos.