Não sei se o leitor conhece o poema de Marwan Makhouil ( 1979): “Para que eu escreva/ um poema não político,/ preciso escutar/ os pássaros. E para que eu ouça/ os pássaros,/ os aviões de guerra/ precisam se calar”.
Nele, o poeta palestino, em dois versos, condensou a tensão existencial entre a necessidade da arte e a sua fragilidade diante da guerra. O autor deixa claro que numa terra marcada pela violência, a arte tem um claro papel político de denúncia. E é justamente isso o que ele faz. Há, no poema, um clamor pela volta dos pássaros, que representam a liberdade, a natureza livre tolhida pela guerra. O homem, para ele, só é capaz de ouvir o cantar das aves, quando o som da morte cessa, do contrário, qualquer beleza da natureza é rompida pelo estrondo das bombas. Vê-se que o poeta sitiado foi econômico nas palavras, conteve-se, sussurrou, quase calado, como um passarinho pousando numa bomba. Entretanto, a sua poesia sobrevive em meio às ruínas de uma terra devastada, além de servir como espaço para denúncia social.
Confesso que relutei muito em deitar a pena sobre esse assunto, talvez por medo de perder os leitores, pois temas tristes nos incomodam, causam úlceras secretas. Ou quem sabe porque, ao retornar das férias, não queria tanta dor na alma, já que “nunca se encontrou nada mais triste do que caixão pequenino” (Mia Couto), mas não há alternativa, fui arrastado ao tema.
No último fim de semana, enquanto eu voltava de prazerosas férias, peguei-me em meio a lágrimas, não pelo termino da fuzarca, pois já era hora, mas pelo artigo do conhecido e conceituado jornal americano, fundado em 1887, “Washington Post”, que assim se inicia: “60.000 habitantes de Gaza foram mortos. 18.500 eram crianças. Estes são os seus nomes”. Em seguida, a reportagem traz os nomes, muitos com fotos, das crianças mortas no último ano, dando-lhes individualidade e rostos, o que impede qualquer negativa (há sempre os terraplanistas). O material é dilacerante, preenchendo páginas e páginas do jornal. Junto ao nome de muitas delas, há descrições da vida privada, como estas:
- Ayloul Qaud, morta aos 7 anos de idade, era “a criança mais linda que já vi na vida, por dentro e por fora”, disse a sua tia Hiba Muqdad. “Passávamos na rua e ela recusava-se a comprar o que quer que fosse, sabendo que outras crianças na rua não tinham condições para comer.";
- Sannd Abu al-Shaer, morto antes de completar um ano, “tinha apenas 70 dias de vida quando um ataque aéreo o matou, juntamente com o seu irmão Abdul, de 8 anos, e o seu irmão Tariq, de 5 anos, em setembro”;
- Tariq Abu al-Shaer, morto aos 5 anos, “ao contrário de muitas crianças, pedia à mãe que o ajudasse a arranjar-se rapidamente para ir à escola. Tinha uma bicicleta e sonhava tornar-se pediatra”;
Em meio à lista, a reportagem informa, elencando as fontes, que, no último ano, mais de 900 crianças foram mortas antes do primeiro aniversário, muitos nas suas camas, outros enquanto brincavam. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Gaza é hoje, para as crianças, o lugar mais perigoso do mundo, já que nos últimos meses, estes seres inocentes foram mortos a um ritmo de mais de uma por hora: “Pensem nisto por um momento. Uma sala de aula inteira de crianças mortas, todos os dias, durante quase dois anos”, disse a Diretora Executiva do Unicef, Catherine Russell, ao Conselho de Segurança da ONU.
Obviamente, nada justifica ou legitima os ataques perpetrados pelos terroristas do Hamas, o qual atacou Israel, no 7 de outubro de 2023, matando cerca de 1.200 pessoas, a maioria civis, e fazendo 251 reféns. Entretanto, o que hoje ocorre em Gaza não é uma guerra, mas um massacre, em especial de civis, os quais também sofrem com bloqueios constantes de entrega de alimentos, água e material médico por parte das Nações Unidas e de outras organizações humanitárias. Segundo informações da ONU, aos 22 de julho deste ano, mais de mil palestinos foram mortos enquanto tentavam obter alimentos. Aos 13 de julho, um ataque aéreo israelita atingiu uma multidão que se alinhava para encher recipientes de água no centro de Gaza.
Não sei ao certo se é a arte que imita a vida ou vice-versa. O filme “O Senhor das Armas” (2005), estrelado por Nicolas Cage, tem um início bem impactante e emblemático sobre o comércio de armas e a violência das guerras. A película se abre com uma narrativa do protagonista, Yuri Orlov (Nicolas Cage):
- “Existem no mundo mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação. Isso significa uma arma para cada doze pessoas do planeta. A única questão é: como armamos as outras onze?”
Em seguida, a câmera acompanha, num plano-sequência, todo o processo de fabricação e circulação de uma bala – da fundição do metal, passando pelo molde, embalagem, transporte, até chega ao cano do fúsil e ser disparado contra a cabeça de uma criança.
O impactante é que a narrativa brutal e o horror do destino final contrastam com a beleza cinematográfica das imagens. Ao fim e ao cabo, o que o filme nos mostra é que a morte de vítimas inocentes é apenas um detalhe, o produto final, em meio à Institucionalização da violência.
Em 1997, José Saramago, o único autor de Língua Portuguesa agraciado com o Nobel de Literatura, concedeu uma entrevista ao jornal “O Globo”. Nela, ele lembrou o caso de um piloto que, durante a Guerra Civil Espanhola, recebeu ordens para bombardear Badajoz, pequena cidade na fronteira com Portugal. Entretanto, ao ver civis andando pelas ruas, desviou o avião e retornou para a base com as bombas destinadas aos inocentes. Questionado pelo superior, ele respondeu que nada fizera, porque “havia lá gente”.
Ao contar este caso, o escritor português trouxe duas considerações bastante atuais. A primeira é que somos, como animais, fadados à violência, mas a crueldade é exclusividade da espécie humana:
- “O simples fato de viver é inseparável de um certo tipo de violência. Se quero comer um bife, isso pressupõe a morte de um boi, o que não é muito diferente da aranha que apanha uma mosca na teia para se alimentar. Portanto, a violência é condição da sobrevivência das espécies. Agora há uma espécie que acrescentou à violência a crueldade, e essa espécie é a nossa. O homem é o único animal cruel que de fato existe.”
A segunda é que em alguns momentos da história, como o que estamos a ver, é preciso dizer não:
— “A grande palavra que se está a precisar nem sequer é a paz. A grande palavra que se está a precisar é “não”.
Hoje, vendo o que ocorre em Gaza, não há como continuar cego, em silêncio, há de restar em cada um de nós humanidade para dizer “não”. É ela que nos dá esperança, como a mensagem de hoje do cantor Cat Stevens (Yusuf), ao nos convidar à reflexão: “Você não pode viver neste planeta e ignorar o que está acontecendo, a menos que tenha perdido sua consciência”
Ops. Para fecho destas linhas, compartilho o link do jornal Washington Post. Julgue-se por si mesmo:
Ops. Caro leitor, desculpe o ranger de dentes, prometo colunas mais amenas, pois há de se cultivar o encanto pela vida, mas, vez ou outra, também o espanto.