A tragédia de Mariana completa uma década nesta quarta-feira (5). Eram cerca de quatro horas da tarde do dia 5 de novembro de 2015, quando a barragem de Fundão, da empresa Samarco Mineração S.A., localizada no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana-MG, rompeu.
Considerada a maior catástrofe ambiental da história do país, a mistura de rejeitos de minério, areia, água e substâncias químicas desceu desenfreada por cerca de 600 quilômetros, pela Bacia do Rio Doce, até encontrar o mar, no Espírito Santo. O volume era suficiente para encher aproximadamente 22 mil piscinas olímpicas.
Ao todo, 19 pessoas morreram, e 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério foram despejados. Um relatório do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), publicado em 2017, aponta que o número de pessoas desalojadas, desabrigadas e afetadas econômica e ambientalmente somente em Minas Gerais chegou a 311 mil.
Como aconteceu?
A barragem de Fundão entrou em operação em 2008 e foi projetada para armazenar os resíduos da extração de minério de ferro (um material sem valor econômico, mas que, por razões ambientais, precisa ser contido de forma segura). A estrutura, feita de terra, era administrada pela Samarco Mineração S.A., controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton.
No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão liberou uma enxurrada de lama que atingiu primeiro a barragem de Santarém, localizada logo abaixo. Com a força do impacto, Santarém transbordou e a onda de rejeitos ganhou ainda mais volume e velocidade.
A lama percorreu cerca de 55 quilômetros pelo Rio Gualaxo do Norte até desaguar no Rio do Carmo. Nesse trajeto, devastou o distrito de Bento Rodrigues, situado a cerca de 5 quilômetros abaixo da barragem, onde viviam aproximadamente 600 pessoas. Depois de destruir o povoado e seguir pelo Rio do Carmo, os rejeitos entraram no Rio Doce, o principal curso d’água da região, com quase 900 quilômetros de extensão.
A lama passou por dezenas de municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo até chegar à foz do rio, em Linhares, no litoral capixaba. Mais de 11 toneladas de peixes morreram, e a lama causou prejuízos ao patrimônio, à pesca, à agropecuária, ao turismo e ao lazer na região.
Linha do tempo até o rompimento
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), os problemas na barragem de Fundão começaram muito antes do rompimento. Apenas cinco meses após o início da operação, em abril de 2009, a estrutura apresentou forte infiltração de água na face externa do reservatório.
De acordo com o MPF, situações como essa em barragens não representam, por si só, um risco, desde que o sistema de drenagem funcione adequadamente. Como o sistema não funcionou corretamente, a água começou a carregar material sólido, como areia e lama, abrindo canais internos e provocando erosão dentro da estrutura.
O dano foi tão grave que a Samarco precisou esvaziar o reservatório, ainda no início da operação, para tentar conter o problema. O histórico de falhas continuou e, em julho de 2010, outro problema foi identificado: houve vazamento de rejeitos arenosos para fora da barragem, o que levou a uma nova paralisação das atividades.
Nos anos seguintes, a barragem passou por diversas intervenções de engenharia, incluindo a construção de um recuo não previsto no projeto original e executado sem licenciamento ambiental. Essas modificações teriam contribuído para o rompimento ocorrido em novembro de 2015.
Alguém foi condenado?
Em 14 de novembro de 2024, nove anos e 9 dias depois do rompimento da barragem, a Justiça Federal absolveu todos os réus. A juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho absolveu a Samarco e suas controladoras, a Vale e a anglo-australiana BHP Billington e também a consultoria VOGBR, além de executivos e empregados dessas empresas.
O Ministério Público Federal (MPF) acusou os réus de crimes como homicídios qualificados e lesão corporal, o que foi afastado pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em 2019. A juíza, ao proferir a sentença que absolveu a Samarco, concluiu que “não ficou comprovado o nexo de causalidade entre as condutas resultado”.
Segundo o advogado criminalista Paulo Crosara, as defesas deram “uma rasteira na tese acusatória”. Além disso, um elemento crucial que fortaleceu a argumentação foi a desqualificação de uma testemunha chave, ligada ao projetista da barragem.
O MPF apresentou recurso contra a sentença de primeira instância que absolveu os réus. No documento, que será julgado pelo Tribunal Regional Federal da Sexta Região, sediado em Belo Horizonte, o órgão questiona o argumento de que as provas apresentadas não permitiriam a identificação das condutas específicas de cada acusado que levaram ao rompimento da barragem.
Houve reparação?
As mineradoras Vale, BHP Billiton e Samarco criaram, em 2016, a Fundação Renova, responsável por gerir as ações de reparação. A atuação da entidade tem sido alvo de polêmicas e críticas por parte dos atingidos.
Em maio de 2019, por exemplo, moradores afetados afirmaram, em audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), que a Renova criminaliza e silencia as vítimas do rompimento da barragem, além de ameaçar, perseguir e promover assédio e divisão entre as comunidades. Segundo eles, a fundação também ignora direitos e adia o cumprimento de acordos.
A Fundação Renova também foi acusada de se aproveitar da lentidão e da demora na tramitação dos processos judiciais para postergar a reparação dos danos às comunidades, atuando, na prática, como defensora dos interesses das mineradoras.
Reconstrução
Uma década após o rompimento da barragem de Fundão, as comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo finalmente foram reconstruídas. As entregas começaram em 2025, com 338 imóveis concluídos, entre moradias, comércios, sítios, lotes e outros bens privados. Também foram finalizados 22 equipamentos públicos, como escolas, postos de saúde, cemitérios e praças, que compõem a nova infraestrutura dos distritos.
Em entrevista à Itatiaia, o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, José Carlos Loss Júnior, destacou que houve grande esforço técnico nas ações de compensação, como nas áreas de saúde, restauração florestal e saneamento, mas pouca efetividade na reparação do dano ambiental principal. Segundo ele, o principal problema ainda é a presença da lama de rejeitos depositada no leito do Rio Doce.
Como vivem os moradores do novo Bento Rodrigues?
O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, ainda marca a rotina dos atingidos. O novo distrito de Bento Rodrigues, reconstruído pela Fundação Renova, abriga parte das famílias que perderam suas casas, mas o sentimento de pertencimento ainda não voltou a ser o mesmo.
“Está diferente. A comunidade não é mais unida como antes. Acho que é por causa do tamanho, que ficou maior. É até difícil a gente rever os amigos”, contou Darlisa Azevedo, de 59 anos. Ela teve a casa e o antigo Bar da Una reconstruídos no Novo Bento, mas ainda sente falta da convivência próxima que existia antes da tragédia.
Para Antônio Gonçalves, de 56 anos, o momento continua sendo de adaptação, em meio a obras que ainda não foram concluídas.
Entre os que decidiram não se mudar para o novo distrito está Dan Mol, de 58 anos. O empresário perdeu a casa e a plantação em Paracatu de Baixo. Para a reportagem, ele revelou estar preocupado com o impacto emocional sobre os atingidos.
“As casas são bem construídas, os vilarejos ficaram bem estruturados, mas a gente tem muita preocupação com o ser humano, com a situação mental das pessoas. Faltou uma estrutura psicológica, alguém para acompanhar esse recomeço. Voltar à origem, começar tudo de novo depois de dez anos não é simples”, afirmou.
O professor universitário e psicanalista René Dentz, que acompanhou grupos de atingidos, avalia que houve empenho na tentativa de oferecer apoio psicológico, mas que o processo falhou em compreender o significado profundo das perdas vividas.
Ele explica que, embora a Fundação Renova tenha reunido profissionais competentes de todo o país, faltou sensibilidade para entender que Bento era uma comunidade rural, distinta de Mariana. “As pessoas ali perderam duas coisas principais: a terra e a comunidade. E a terra, para elas, é quase uma extensão do corpo”, explicou o psicanalista.
Segundo Dentz, o novo Bento foi projetado como um conjunto de casas, quase um condomínio, mas não reproduz o espírito da comunidade rural que existia antes.
Quem morreu na tragédia?
- Edmirson José Pessoa, de 48 anos (única vítima não encontrada)
- Emanuely Vitória, de 5 anos
- Thiago Damasceno Santos, de 7 anos
- Mateus Márcio Fernandes, de 29 anos
- Marcos Xavier, de 32 anos
- Marcos Aurélio Pereira Moura, de 34 anos
- Samuel Vieira Albino, de 34 anos
- Vando Maurílio dos Santos, de 37 anos
- Edinaldo Oliveira de Assis
- Claudemir Santos, de 40 anos
- Claudio Fiuza, de 40 anos
- Sileno Narkievicius de Lima, de 47 anos
- Waldemir Aparecido Leandro, de 48 anos
- Daniel Altamiro de Carvalho, de 53 anos
- Ailton Martins dos Santos, de 55 anos
- Pedro Paulino Lopes, de 56 anos
- Maria Elisa Lucas, de 60 anos
- Maria das Graças Celestino, 64 anos
- Antônio Prisco de Souza, de 73 anos
Quais municípios foram atingidos?
De acordo com um levantamento do Governo de Minas Gerais e dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os rejeitos da barragem alcançaram 35 municípios mineiros, espalhados por uma área de quase 18 mil quilômetros quadrados, o equivalente a todo o estado de Sergipe. A soma das populações dessas cidades, conforme o Censo de 2010, ultrapassa 1,04 milhão de pessoas.
Lista:
- Aimorés
- Alpercata
- Barra Longa
- Belo Oriente
- Bom Jesus do Galho
- Bugre
- Caratinga
- Conselheiro Pena
- Córrego Novo
- Dionísio
- Fernandes Tourinho
- Galiléia
- Governador Valadares
- Iapu
- Ipaba
- Ipatinga
- Itueta
- Mariana
- Marliéria
- Naque
- Periquito
- Pingo-d'Água
- Raul Soares
- Resplendor
- Rio Casca
- Rio Doce
- Santa Cruz do Escalvado
- Santana do Paraíso
- São Domingos do Prata
- São José do Goiabal
- São Pedro dos Ferros
- Sem-Peixe
- Sobrália
- Timóteo
- Tumiritinga