“Todo sertanejo é, antes de tudo, um forte”, eternizou Euclides da Cunha no antológico romance “Os Sertões”, de 1902. Mas, imagine se você fosse um pequeno produtor rural no semiárido mineiro onde, historicamente, chove cerca de 800 milímetros por ano, metade do esperado para a Grande BH, por exemplo. Em consequência disso, as lavouras não se desenvolvem bem sem irrigação. Quem quiser trabalhar com a terra precisa investir no equipamento e arcar com toda a infraestrutura. Isso, claro, se conseguir aprovação do projeto pelos órgãos ambientais. Talvez seja necessário contratar uma consultoria especializada e esperar meses pela resposta.
Com o alto valor das taxas e custas dos processos de outorga, a maior parte dos pequenos produtores não corresponde à ‘fortaleza’ que lhe foi atribuída pelo famoso escritor: desiste no meio do caminho, alerta o engenheiro florestal Juvenal Mendes Oliveira, ex-assessor do Instituto Estadual de Florestas (IEF): “Ele precisa conseguir um empréstimo no banco, mas tem receio de fazer dívida ou, simplesmente, não acredita que o investimento lhe trará resultados que compensem”.
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Desenvolvimento acanhado no campo resulta em baixa autoestima
A falta de condições para conseguir implantar sistemas de irrigação é a realidade de 75% dos produtores rurais no Estado, fatia que, de acordo com o último censo agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, representa os pequenos produtores em Minas. O resultado é a baixa autoestima dos produtores, má qualidade de vida e a sub-produção agropecuária.
A escassez hídrica do semiárido mineiro, no Norte e Noroeste de Minas, atravessa o tempo. Fruticultores, horticultores, pecuaristas e produtores de grãos enfrentam, ano após ano, muitos desafios. Eles esbarram na falta de acesso a crédito e em leis e especificidades que consideram impeditivas para o pleno desenvolvimento do trabalho nos pastos e lavouras.
Forma ‘descendente’ do ar atmosférico é uma das razões para o baixo índice pluviométrico
A escassez hídrica no semiárido mineiro (e também no nordeste do Brasil) tem uma explicação natural: a forma como o ar atmosférico desce, dificultando a formação de nuvens e bloqueando a chegada de frentes frias, conforme explica o meteorologista e doutor em Climatologia Ruibran dos Reis. A Circulação Geral da Atmosfera, que configura os tipos de clima em todo o mundo, torna essas regiões ‘vítimas’ de um clima semelhante ao desértico. “Simplesmente não chove porque a dinâmica da circulação do ar funciona dessa forma o ano inteiro, desde que o mundo é mundo, e vai continuar assim nos próximos milênios”, aponta.
O pesquisador e climatologista Douglas Strang, com quem Ruibran trabalhou, identificou ainda uma bolha de ar gigantesca entre o Brasil e a África. À medida que esta bolha sobe na atmosfera, um de seus eixos aponta exatamente para o nordeste do Brasil e o Norte de Minas, reforçando a escassez hídrica. “Para complicar, as chuvas nessas regiões começam sempre um mês depois de terem começado em outras regiões (em novembro) e se encerram um mês antes (em fevereiro)”, pontua Ruibran.
‘Não podemos jogar a culpa apenas na falta de chuva’
No entanto, o meteorologista pondera que o baixo regime de chuvas, não pode ser 100% determinante do desenvolvimento da agricultura. Ele lembra que há regiões em outros países em que a precipitação é ainda menor, oscilando em torno de 250 a 300 mm por ano, mas modernas técnicas de plantio e irrigação garantem uma boa produtividade. “Não podemos jogar a culpa apenas na falta de chuva. A verdade é que estamos atrasados, usando muito menos o recurso da irrigação do que deveríamos”.
Série “O agro sem água”
Nesta semana, a Itatiaia publica uma série de reportagens sobre o trabalho de produtores rurais no semiárido mineiro. Destacamos os avanços, as conquistas e os empecilhos enfrentados. Também mostramos como o setor lida com recentes alterações legais, como a Lei 24.931, que regulamenta a outorga coletiva de água em Minas e a Política Estadual de Agricultura Irrigada. Não percam!