Mitos sobre o peixe ‘limpa vidro’ levam à mortalidade do pet em aquários domésticos

Ao contrário do que o senso comum sugere, ele não se alimenta de excrementos de outros peixes nem de restos de ração apodrecida

Colocá-lo em um aquário esperando que ele resolva problemas de higiene causados por falta de filtragem é uma sentença de morte para o animal e uma ineficiência para o aquário

No universo do aquarismo, poucas espécies sofrem tanto com a visão utilitarista quanto o Otocinclus, popularmente conhecido como “limpa vidro”. Frequentemente comprado como se fosse uma ferramenta de manutenção ou um aspirador de pó vivo, esse pequeno peixe silvestre de origem sul-americana é, na verdade, um animal de necessidades complexas e fragilidade extrema.

A ideia de que ele “come sujeira” é um mito perigoso que leva milhares desses animais à morte por fome poucas semanas após a compra.

A função ecológica do Limpa Vidro na natureza, e no aquário, é a de um herbívoro comum. Ele tem uma boca em formato de ventosa desenhada evolutivamente para raspar algas e o chamado biofilme, uma camada de micro-organismos que se forma em pedras, troncos e folhas.

Ao contrário do que o senso comum sugere, ele não se alimenta de excrementos de outros peixes e nem de restos de ração apodrecida. Colocá-lo em um aquário esperando que ele resolva problemas de higiene causados por falta de filtragem é uma sentença de morte para o animal e uma ineficiência para o aquário.

A bióloga e especialista em ecossistema aquático, Aline Almeida, em publicações sobre manejo de fauna ornamental, alerta para o erro crônico de introduzir esses animais em aquários “novos” (com menos de 6 meses de montagem), onde a colônia de algas invisíveis ainda não se formou.

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“O Otocinclus é um micropredador de algas marrons e verdes macias (diatomáceas). Em aquários recém-montados, visualmente ‘limpos’, não há oferta suficiente desse alimento natural. O animal morre de fome com a barriga cheia de ração que ele não consegue digerir ou simplesmente por não reconhecer a comida industrializada como alimento. A mortalidade pós-venda dessa espécie é altíssima devido à falta de suplementação vegetal”, explica a bióloga no portal de aquarismo Brasileiro AquaA3.

Outro aspecto negligenciado é a sociabilidade. O Limpa Vidro é um peixe de cardume. Na natureza, vivem em grupos de milhares para se protegerem de predadores. Quando um aquarista compra apenas um exemplar, ele submete o animal a um estresse crônico. O cortisol elevado baixa a imunidade, tornando-o suscetível a doenças bacterianas.

Além do comportamento, a sensibilidade química é um fator determinante. Eles são considerados “bioindicadores” de qualidade da água. Enquanto outras espécies toleram picos leves de amônia ou nitrito, o Otocinclus adoece rapidamente. Manuais de medicina de animais exóticos reforçam que a presença deles exige uma qualidade de água impecável, rica em oxigênio e com parâmetros estáveis.

“Os loricarídeos (família dos cascudos e limpa vidros) possuem uma tolerância muito baixa a compostos nitrogenados e metais pesados. Eles exigem águas bem oxigenadas e movimentadas. A presença de níveis detectáveis de amônia ou nitrito, que poderiam ser apenas irritantes para ciclídeos, pode ser letal para o Otocinclus em questão de horas”, orienta o Manual de Doenças de Peixes Ornamentais da Ornamental Aquatic Trade Association (OATA).

Jessica de Almeida é repórter multimídia e colabora com reportagens para a Itatiaia. Tem experiência em reportagem, checagem de fatos, produção audiovisual e trabalhos publicados em veículos como o jornal O Globo e as rádios alemãs Deutschlandfunk Kultur e SWR. Foi bolsista do International Center for Journalists.

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