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‘Retrato do Brasil’, diz Daniela Arbex sobre absolvição dos réus do incêndio no Ninho do Urubu

Jornalista e escritora é autora de ‘Longe do Ninho’, livro-reportagem sobre a tragédia. Obra concorre ao Jabuti 2025

Jovens mortos no incêndio do Ninho do Urubu em 8 de fevereiro de 2019

A jornalista e escritora Daniela Arbex se pronunciou nas redes sociais sobre a absolvição de sete réus envolvidos no incêndio no Ninho do Urubu, CT do Flamengo, em 2019. A decisão foi proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nesta terça-feira (21). Cabe recurso.

Daniela Arbex escreveu o livro-reportagem “Longe do Ninho” sobre a tragédia que matou 10 jovens jogadores da categoria de base e deixou três feridos. A obra é finalista na categoria Biografia e Reportagem no prêmio Jabuti em 2025.

“A decisão da justiça do Rio de absolver todos os réus do incêndio ocorrido dentro de um contêiner no Ninho do Urubu, quando dez atletas de base morreram, é o retrato do Brasil. De um país que é condescendente com os poderes vigentes, que não possui uma cultura de prevenção e que é negligente quando o assunto é segurança e, principalmente, a responsabilização dos autores das tragédias anunciadas ocorridas na nossa história recente. A falta de justiça em um país tão carente de representação não alimenta só a impunidade. É um salvo-conduto para crimes futuros”, escreveu a jornalista.

Ela segue enumerando os pontos indicados pela investigação que poderiam ter evitado a tragédia, inclusive alertas do Ministério Público sobre “dificuldades em caso de grandes emergências”.

“De acordo com a decisão do juiz, a absolvição dos réus foi fundamentada na “ausência de demonstração de culpa penalmente relevante e na impossibilidade de estabelecer um nexo causal seguro entre as condutas individuais e a ignição”. A falta de condenação deveria ser uma notícia surpreendente, mas, infelizmente não é. Significa apenas mais do mesmo: a incapacidade do sistema de justiça de garantir a reparação não só necessária, mas urgente.”

Segundo a jornalista, diante da resposta da Justiça, ela prefere lembrar da coragem dos jovens vitimados no incêndio e relembra a amizade entre o mineiro de Além Paraíba, Jorge Eduardo, e Samuel.

“Jorge Eduardo foi o primeiro a perceber o fogo em seu quarto. Acordou todos os amigos, mas, em função da inalação da fumaça, se viu debilitado demais para conseguir fugir em um contêiner onde todas as janelas eram gradeadas. Cercado pelas chamas, Samuel, que era o melhor amigo de Jorge Eduardo, o carregou nas costas. Horas mais tarde, os dois foram encontrados pela perícia criminal na posição de boxeador, muito comum entre os carbonizados. Na tentativa de escapar do fogo, Samuel carregou o amigo nas costas. Seus corpos receberam o número 5 e 6. Os dois amigos deixaram uma mensagem clara: a da lealdade e da afetividade capazes de vencer o medo da morte.

Hoje, mais do que nunca, tenho convicção que a vida precisa da arte, porque se uma história não é contada é como se ela não tivesse existido. Não haverá esquecimento para Pablo, Jorge Eduardo, Vitor, Gedson, Samuel, Arthur, Rykelmo, Athila, Christian e Bernardo” (leia abaixo a íntegra do texto de Daniela Arbex)

As vítimas do incêndio no Ninho do Urubu

O incêndio no alojamento das divisões de base do Flamengo, em 8 de fevereiro de 2019, vitimou Athila Paixão (14), Arthur Vinícius (14), Bernardo Pisetta (14), Christian Esmério (15), Gedson Santos (14), Jorge Eduardo Santos (15), Pablo Henrique (14), Rykelmo de Souza (16), Samuel Thomas Rosa (15), e Vitor Isaías (15).

Outros 16 jovens estavam no local na data do ocorrido e escaparam com vida. Jhonata Ventura, Dyogo Alves e Cauan Emanuel sofreram lesões, mas recuperaram-se e seguem ligados ao futebol.

Ouça a matéria de Diana Rogers sobre a absolvição.

Íntegra do pronunciamento de Daniela Arbex

A decisão da justiça do Rio de absolver todos os réus do incêndio ocorrido dentro de um contêiner no Ninho do Urubu, quando dez atletas de base morreram, é o retrato do Brasil. De um país que é condescendente com os poderes vigentes, que não possui uma cultura de prevenção e que é negligente quando o assunto é segurança e, principalmente, a responsabilização dos autores das tragédias anunciadas ocorridas na nossa história recente. A falta de justiça em um país tão carente de representação não alimenta só a impunidade. É um salvo-conduto para crimes futuros.

Com alvará de funcionamento do Centro de Treinamento do Flamengo vencido desde 2012, a Prefeitura do Rio só emitiu um Edital de Interdição para paralisação imediata das atividades não legalizadas no CT cinco anos depois, em 2017, assim mesmo sem efeito. Tudo continuou funcionando como estava, com a aplicação de multas irrisórias, que o Flamengo pagou por mais de dez vezes. O Flamengo só teve trabalho extra, em 2018, quando precisou inventar uma narrativa para a imprensa sobre a obrigatoriedade de cobrir o letreiro do clube até a obtenção do alvará. Preocupados com a “imagem” da instituição, os diretores traçaram um plano: “em vez de cobrir o letreiro, melhor retirá-lo sob a justificativa que será limpo ou restaurado”, escreveu um dos membros, por e-mail, no início de 2018.

Pior do que isso foi ter sido constatado que, desde 2012, ou seja, sete anos antes do incêndio do 8 de fevereiro de 2019, o Ministério Público já demonstrava preocupação com as condições oferecidas pelo clube aos atletas em formação e que resultou em uma ação proposta em 2015 para a melhoria das condições de alojamento, segurança e saúde dos atletas. Como se não bastasse tudo isso, em 18 de junho de 2018 – sete meses antes do incêndio que vitimou dez jovens -, uma vistoria técnica no contêiner onde os atletas dormiam alertava: “esses fatos podem trazer dificuldades em caso de uma situação de grande emergência”, alertou a equipe do MPRJ.

O fato é que o Flamengo teve inúmeras oportunidades de se adequar. Já os atletas não tiveram nenhuma chance.

De acordo com a decisão do juiz, a absolvição dos réus foi fundamentada na “ausência de demonstração de culpa penalmente relevante e na impossibilidade de estabelecer um nexo causal seguro entre as condutas individuais e a ignição”. A falta de condenação deveria ser uma notícia surpreendente, mas, infelizmente não é. Significa apenas mais do mesmo: a incapacidade do sistema de justiça de garantir a reparação não só necessária, mas urgente.

Como resposta a essa decisão, fico com a coragem dos jogadores mortos no incêndio de 2019. Jorge Eduardo foi o primeiro a perceber o fogo em seu quarto. Acordou todos os amigos, mas, em função da inalação da fumaça, se viu debilitado demais para conseguir fugir em um contêiner onde todas as janelas eram gradeadas. Cercado pelas chamas, Samuel, que era o melhor amigo de Jorge Eduardo, o carregou nas costas. Horas mais tarde, os dois foram encontrados pela perícia criminal na posição de boxeador, muito comum entre os carbonizados. Na tentativa de escapar do fogo, Samuel carregou o amigo nas costas. Seus corpos receberam o número 5 e 6. Os dois amigos deixaram uma mensagem clara: a da lealdade e da afetividade capazes de vencer o medo da morte.

Hoje, mais do que nunca, tenho convicção que a vida precisa da arte, porque se uma história não é contada é como se ela não tivesse existido. Não haverá esquecimento para Pablo, Jorge Eduardo, Vitor, Gedson, Samuel, Arthur, Rykelmo, Athila, Christian e Bernardo”

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Natural de Juiz de Fora, jornalista com graduação e mestrado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Experiência anterior em Rádio, TV e Internet. Gosta de esporte, filmes e livros. Editora Web na Itatiaia Juiz de Fora desde 2023. Tricampeã na categoria Web/Mídias Digitais no Prêmio Oddone Prêmio Oddone Turolla de Jornalismo, do Sindicomércio JF.