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Elon Musk pode ter encenado compra do Twitter?

Disputa inclui acusações de violação de obrigações de contrato de ambos os lados

Especialista em polêmicas, Elon Musk pode ter encenado interesse

Antes da oferta de compra do Twitter, Elon Musk chegou a adquirir 9% de suas ações. “Em geral, quando um acordo de aquisição é divulgado, ele já passou por outras fases de negociação”, comenta Patrícia Cabral Bittencourt, advogada com experiência no Brasil e nos EUA e sócia no Gaudêncio Advogados. “Antes de decidir comprar a empresa, o interessado tem acesso a dados confidenciais e, depois, há uma auditoria para verificar as informações.”

Ela lembra que a rede social alega que, lá no primeiro momento do acordo, Musk abriu mão da análise do percentual de contas falsas existentes na plataforma. “Se isso for comprovado, pode-se entender que os robôs não seriam uma condição material suficiente para o empresário comprar ou não a plataforma. Nesse caso, o empresário dificilmente ganharia a ação.”

Por outro lado, alegar que o argumento usado por Musk não estava em contrato não é bom para o Twitter. “Justificar que ter mais de 5% de contas falsas não invalida o contrato porque isso não foi estabelecido no documento é uma defesa ruim, uma vez que o processo e o julgamento serão públicos. Isso pode expor o Twitter a outras violações, investigação do órgão regulador e falta de confiabilidade do mercado.”

Tudo isso tem levado muitos a se perguntarem se o empresário apenas encenou a compra para se divertir. Quando declarou que ia comprar o Twitter, ele passou a receber atenção, pôde mandar nas pessoas, mobilizar banqueiros, advogados e fontes de financiamento e esperançosos no fechamento do negócio. Aí, ficou entendiado e decidiu desmontar a farsa.

Em 2018, o magnata fez algo semelhante: informou que tornaria a Tesla uma empresa privada — e isso lhe custou uma multa de US$ 20 milhões. Parece que, agora, quer fazer algo semelhante com o Twitter: se tudo der certo, ele paga a penalidade de US$ 1 bilhão por desistir do contrato e economiza os outros US$ 43 bilhões que comporiam o preço total oferecido.

A considerar todas as polêmicas em que Musk se envolve em busca de publicidade pessoal e para suas empresas, é bem provável que, quando toda a negociação com o Twitter terminar, o empresário esteja ainda mais conhecido. E ele provavelmente vai gostar bastante disso.

Julgamento em Delaware

Nos EUA, a Justiça é muito baseada em precedentes e princípios e costumes — diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a lei é efetivamente escrita —, o que faz a oralidade ter uma força vinculante muito maior em contratos. “Lá, os contratos são constituídos a partir de dois elementos: o encontro de vontades e o poder de barganha”, explica Patrícia. “A ideia envolve, então, interesses negociados. Se for a vontade de apenas um, não é um contrato e o arrependimento é válido.”

Isso quer dizer que as partes devem cumprir as obrigações definidas no documento e isso pode ser exigido pelo outro. No caso entre Musk e Twitter, em que se pressupõe que os interessados são igualmente capazes — afinal, é uma negociação de sociedade empresarial em que todos têm o mesmo nível de acesso a aconselhamento jurídico —, deve estar determinado em contrato o que pode ser exigido e o que pode ser convertido em perdas e danos (como o pagamento de multas).

Como empresa de capital aberto, o Twitter deve enviar relatórios periódicos à Comissão de Valores Mobiliários (Securities and Exchange Commission – SEC). “Ao dizer que a empresa mente em relação aos números divulgados, Musk a acusa de mentir para todos os acionistas. Isso vai além da violação contratual, é uma violação re gulatória nos EUA”, explica Patrícia.

Nesse caso, é incomum levar esse tipo de disputa para o Judiciário. Normalmente, isso se resolve em acordos. No Brasil, por exemplo, esses casos podem ser discutidos em câmaras de arbritragem. “Já nos EUA, o Estado de Delaware se preocupa muito em deixar as regras societárias bem definidas. E as decisões de casos anteriores são vinculadas como lei.”

Mesmo assim, o Twitter optou por recorrer à Justiça para garantir o cumprimento do acordo. A empresa alega que o empresário “se nega a honrar as obrigações com a companhia e seus acionistas porque o acordo não serve mais a seus interesses pessoais”. “Musk aparentemente acredita que pode mudar de ideia, destruir a empresa, interromper suas operações, arruinar o valor do acionista e ir embora.”

A primeira audiência foi marcada para terça-feira (19). O cronograma depois disso depende de vários fatores, mas os interessados devem passar a solicitar informações que consideram relevantes. Em seguida, pode haver um julgamento, mas há chance de que o juiz do caso rejeite os motivos de Musk para desistir da operação. Se chegar ao julgamento, é o juiz quem vai decidir se as informações prestadas pelo Twitter são insuficientes e têm potencial de efeito adverso material para o negócio.

O Tribunal de Chancelaria de Delaware já evitou que empresas deixassem acordos anteriormente. Em 2001, por exemplo, a Tyson Foods tentou desistir da aquisição da IBP, sob a alegação de que havia um efeito material adverso, mas teve de seguir com a transação porque o chanceler ordenou a execução específica do acordo de fusão. E, nos casos em que permitiu o cancelamento da operação, impôs multas.

Defensores experientes

Segundo o Twitter, nenhuma indenização financeira pode reparar o dano já causado à empresa. O escritório contratado pela plataforma para representá-la perante a Justiça é o Wachtell, Lipton, Rosen & Katz, famoso por adotar táticas legais para proteger empresas de compradores hostis. O líder do caso é o experiente advogado William Savitt.

Musk, por sua vez, tem o escritório Skadden, Arps, Slate, Meagher & Flom a seu lado, além de Alex Spiro, seu advogado pessoal. Eles atuaram na tentativa da LVMH Moët Hennessy Louis Vuitton de desistir do acordo de US$ 16 bilhões com a Tiffany & Company. O resultado foi uma economia de US$ 420 milhões para a compradora.

Sean Edgett, conselheiro geral do Twitter, informou os colaboradores da companhia sobre a ação em um memorando interno. Ele diz que a empresa pediu “um julgamento acelerado e que o caso seja ouvido em setembro, pois é extremamente importante que esse assunto seja resolvido rapidamente”.

A ideia é que o julgamento dure quatro dias em setembro, uma vez que o negócio entre Musk e a plataforma deve ser concluído até 24 de outubro. Se a transação ainda estiver aguardando aprovação regulatória nessa data, eles têm mais seis meses para fechá-la.

Para Patrícia, todo o processo deve levar mais tempo. “Na minha opinião, demora bem mais que isso. O que Musk tiver de oportunidade para atrasar a conclusão do caso, ele vai procurar usar para ganhar tempo em busca de fazer um acordo ou resolver de outra forma. Uma discussão similar que acompanhei em arbitragem demorou 1,5 ano para uma decisão inicial”, avalia. “Só vai mais rápido se o juiz disser que os argumentos são irrelevantes.”

Se a conclusão da ação demorar, quem perde é o Twitter. “O preço dos títulos tem estado instável desde que a disputa começou. Quanto mais tempo levar, pior para a empresa”, destaca Douglas Galiazzo, professor de Direito da Estácio. “E se, ao final, ficar provado que o percentual de contas falsas é realmente superior ao declarado, pior ainda para a companhia.”

No Brasil, mesmo em casos semelhantes, a decisão de uma ação não é aplicada diretamente a outras porque os precedentes não se transformam em lei. Já nos EUA, eles se tornam lei no Estado em que ocorrem — mas os de um Estado não são aplicáveis em outro.