Em um momento em que 88% das salas de cinema do país estão concentradas em shopping centers, segundo dados da Ancine, os cinemas de rua se tornaram raridade no Brasil. Em Belo Horizonte, restaram apenas três salas desse tipo em funcionamento. Ainda assim, em plena era do streaming — quando o hábito de ir ao cinema vem sendo cada vez mais substituído por assistir a filmes no celular, em casa — e com os
Inaugurado no fim de novembro, o espaço funciona em uma casa tombada na rua Itapecerica, 468, transformada em centro cultural, onde sessões gratuitas devolvem o cinema de rua ao bairro Lagoinha, na Região Noroeste da capital.
Pequeno e simples, com capacidade para 50 pessoas, a casa amarela aposta na experiência coletiva de ver filmes de graça, voltada tanto para quem ama cinema quanto para quem não costuma ter acesso a esse tipo de programação.
“Estamos indo na contramão do mercado tradicional do audiovisual. O Cine Graciano é um espaço de resistência que nasceu na Lagoinha, um bairro muitas vezes lembrado só pela vulnerabilidade social, mas que é, acima de tudo, um território de cultura viva e ancestral. Não somos contra o streaming — ele faz parte do nosso tempo e é importante para a circulação dos filmes. O problema é quando tudo fica restrito a ele”, afirmou Bruna Piantino, uma das curadoras dos filmes exibidos na Sala Cine Graciano.
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A abertura acontece quando grande parte dos antigos cinemas de rua de Belo Horizonte deu lugar a estacionamentos, igrejas ou prédios residenciais de luxo. “Ainda existe uma imensa demanda por cinemas de rua, com programação alternativa, cineclubes e espaços que dialoguem com o bairro e com a comunidade onde estão inseridos”, acrescentou.
Como tudo começou
O projeto que deu origem à Sala Cine Graciano nasceu de uma história de persistência. O Coletivo Filme de Rua começou há dez anos, quando a psicóloga Joanna Ladeira, o historiador Guilherme Fernandes Melo e a produtora Paula Kimo se encontraram com jovens em situação de rua no Centro de Belo Horizonte para, juntos, fazer filmes.
A ideia inicial era fazer um filme de forma coletiva, sem roteiro. Os primeiros jovens a abraçar a ideia e entrar no projeto foram Samuel Sousa, Maira e Hugo Graciano. A virada para o cinema de rua ocorreu após a circulação do primeiro curta-metragem do coletivo, que foi premiado e exibido em festivais, incluindo, no Recôncavo Baiano, em 2017.
Na volta dessa viagem, depois de dois dias de estrada em uma van, surgiu a ideia de fazer outros filmes e também de abrir uma sala de cinema. “Daniel Carneiro, que além de montador [de filme] formou seu olhar nos cinemas de rua da cidade, compartilhou essa experiência e, a partir disso, começamos a pensar em formas mais simples de montar uma sala e valorizar esse espaço coletivo de assistir filmes juntos”, contou Jovanna Ladeira, psicóloga e uma das idealizadoras do Coletivo Filme de Rua.
A partir daí, o grupo entendeu que bastava um projetor, caixas de som, cadeiras e um telão, além de muita disposição, para construir uma curadoria capaz de ampliar o olhar sobre o cinema. A proposta é dar espaço a filmes independentes que, muitas vezes, ficam engavetados após os festivais, além de valorizar produções mineiras que não chegam aos circuitos comerciais. Nesse período, fizeram a gravação de três filmes: um curta e dois longas.
‘Ver, Pensar e Fazer Filmes’
O sonho se concretizou quando, em março de 2019, o coletivo inaugurou a primeira sala de cinema, o Espaço Cultural Filme de Rua, no Edifício Sulamérica, no Centro. “Sustentado pelo tripé ‘Ver, Pensar e Fazer Filmes’, o espaço funcionava como sede do coletivo: nossa sala de cinema, que exibiu cerca de 85 sessões, e também um espaço criativo para a realização dos nossos filmes, além de abrigar a ilha de edição”, acrescentou Jovanna.
Com a pandemia de Covid-19, o coletivo interrompeu as atividades e, em 2023, entregou o espaço. “Mesmo assim, mantivemos o vínculo entre nós por meio das redes sociais durante todo esse período, certos de que chegaria o momento de inaugurar um novo lugar”, explicou.
Na retomada, em 2024, outros parceiros e profissionais se somaram ao projeto. ‘'A reunião dessas pessoas possibilitou a escrita do nosso projeto mais recente, a sala de cinema Cine Graciano, aprovado para indicação de emenda parlamentar, que vem sendo executada pela Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult-MG)’’, afirmou Jovanna. Os valores não foram informados.
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De lojinha à sala de cinema
Foi aí que a Sala Cine Graciano nasceu na casa que funcionava como lojinha de embalagens na Rua Itapecerica. “A fachada nos encantou e, após uma série de adaptações, transformamos o espaço em uma sala de cinema”, contou Jovanna. Segundo ela, a expectativa é receber um público diverso, como profissionais do audiovisual, moradores da região e da cidade e estudantes, oferecendo um espaço para pausar a rotina.
Na tela, a proposta é priorizar produções que reforcem a importância da valorização dos direitos humanos. Nesta quinta-feira (18), a programação reúne três sessões. Às 15h, serão exibidos os curtas de ficção “Chão de Fábrica”, de Nina Kopko, que retrata o cotidiano de operárias em uma metalúrgica nos anos 1970; “Estado Itinerante”, de Ana Carolina Soares, sobre uma cobradora de ônibus que busca escapar de uma relação opressora; e “Mandinga”, de Mariana Starling, que aborda desejo, trauma e imaginação a partir do olhar de uma mulher.
A programação regular ocorrerá às terças e quintas-feiras, às 19h, e também às quintas, às 15h.
De sala de cinema à estacionamentos
A capital mineira já foi palco de dezenas de salas de cinema, mas, hoje, restam poucas telas de rua funcionando: o Cine Belas Artes, na Praça da Liberdade, o Cine Santa Tereza, na Região Leste, e o Cine Brasil — com programações pontuais, no Hipercentro.
“Em muitos casos, os prédios dos antigos cinemas de rua ainda existem, mas perderam sua função cultural. É o caso do Cine Pathé, na Savassi (Centro-Sul), que mantém a fachada tombada e a bilheteria, mas hoje abriga um estacionamento, e do Cine Guarani, na Rua da Bahia (Centro), que funciona como delegacia, restando apenas a bilheteria como memória de que ali já houve um cinema”, disse escritor e cofundador do movimento BH a Pé, Rafael Sette Câmara,
O fechamento de muitas salas foi um processo ao longo de décadas, intensificado com a chegada da televisão nas décadas de 1970 e 1980 e, posteriormente, com a migração dos cinemas para os shoppings. Mais recentemente, esse movimento se agravou com a popularização dos serviços de streaming, como a Netflix.
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“Hoje, restam poucos cinemas de rua, e o cinema como experiência coletiva sofre com essa mudança. Apesar de representar uma transformação natural do tempo, trata-se de uma perda: o cinema de rua oferece uma imersão que a experiência doméstica não proporciona. Na sala escura, em silêncio, com celulares desligados, o espectador se dedica integralmente ao filme por horas, algo difícil de manter em casa, onde há interrupções constantes”, analisou Rafael.
“Esse excesso de estímulos também reduziu nossa capacidade de concentração, tornando filmes longos mais difíceis de assistir. Por isso, o hábito de ir ao cinema faz falta justamente por permitir, de forma paradoxal, um desligamento das telas e uma relação mais profunda com a arte”, acrescentou.
Cinema de rua é a alma da cidade
Para Rafael, o cinema de rua tem uma ‘alma’ e ajuda a manter a cidade viva, diferente do cinema de shopping. “Para mim, o cinema de rua tem algo que o de shopping não tem: alma. Como dizia João do Rio, as ruas têm alma, e o cinema de rua também. Ele mantém a cidade viva, movimenta o entorno e fortalece a ocupação dos espaços urbanos.”
Foi em um cinema de rua da capital, que funcionava na rua dos Tupis e era conhecido como Cine Jacques ou Cine Tupis, que começou uma amizade que marcaria a história da música brasileira.
''Esse cinema viu, basicamente, o início da amizade entre Márcio Borges e Milton Nascimento. Os dois foram juntos assistir ao filme francês Jules e Jim – Uma Mulher para Dois (1962), ficaram muito amigos, viram o filme três vezes seguidas e, ao saírem do cinema, foram correndo para o edifício Levy”, disse Rafael.
Ali nasceram as três primeiras músicas da dupla, o que marca, de certa forma, o início do Clube da Esquina. ‘O cinema, como ponto de encontro, de conversa e de troca, sempre foi isso’, finalizou.
Desde 27 de novembro, o Cine Graciano ocupa uma casa na Rua Itapecerica, 468, na Lagoinha