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Indignação! A trágica morte de Laudemir

Indignação porque, nas redes sociais, o autor se apresentava como cristão, marido, pai e patriota

Laudemir de Souza Fernandes, 44 anos, teria tentado “apaziguar” a situação

Indignação! Há uma espinha entalada na garganta. Um nó que não se desata, um sentimento de desilusão que não pede licença. Na manhã de segunda-feira, 11 de agosto, na Rua Modestina de Souza, no Vista Alegre, em Belo Horizonte, Laudemir de Souza Fernandes, 44 anos, gari da Superintendência de Limpeza Urbana (SLU), foi morto com um tiro no abdômen enquanto trabalhava, depois que uma discussão de trânsito terminou em tiro. Renê da Silva Nogueira Júnior não esperou a liberação da via; preferiu o gatilho. Um morreu no trabalho; o outro foi treinar. Horas depois, ele foi preso em flagrante em uma academia.

Indignação porque entre o trabalhador que cai no asfalto e o atirador que segue para a musculação está todo o escândalo moral do episódio. A frieza do gesto é tão eloquente quanto o disparo.

Indignação! As perguntas que correm no táxi, no ônibus e na padaria são diretas: por que ele matou Laudemir? Por que andava armado? Matou porque não quis esperar. Matou porque tratou a vida alheia como detalhe de trânsito. Porte é exceção legal, não adereço de autoestima. Discussão de trânsito não é legítima defesa. Arma não é argumento. Quando a arma entra na conversa, a conversa termina. E quem morre é o mais vulnerável, quase sempre o mais pobre.

Indignação é reconhecer, com a filósofa Hannah Arendt, a banalidade do mal: o intolerável que passa por hábito. O mal se banaliza quando deixamos de pensar e repetimos gestos automáticos. Ofende-se, saca-se a arma, dispara-se, retoma-se a agenda. Não há monstros em cena; há indiferença e conveniência. Foi isso que aconteceu ali: uma mulher ameaçada, um gari que tenta apaziguar, um disparo que encerra a conversa. Democracia exige freio interior. Civilização é o respeito à vida antes de qualquer vaidade.

Indignação porque não basta prender. É preciso responsabilizar com a medida certa da lei. O caso aponta para homicídio qualificado por motivo fútil. O caminho é conhecido: investigação séria, denúncia adequada, julgamento pela prova, execução da pena sem atalho e sem blindagem. Dinheiro, cargo, sobrenome e currículo não podem ser salvo-conduto.

Indignação tem rosto e voz no bairro. Na terça, 12 de agosto, ouvi Bruna Fernanda, motorista de aplicativo e moradora do Vista Alegre. Ela conhece a motorista do caminhão. E perguntou, com a tristeza de quem sabe como o Brasil funciona: “A Justiça vai ser feita? Queria ver se fosse um gari matando um playboy desses. Como é o contrário, a gente fica desanimada”. Esse desânimo é fato social e político. É o vácuo onde a violência vira hábito.

Indignação porque, nas redes sociais, o autor se apresentava como cristão, marido, pai e patriota. O “cristão” apertou o gatilho. O marido foi treinar como se nada tivesse acontecido. O patriota passou por cima da lei. O pai deixou o pior exemplo. Se Deus, pátria e família viram pretexto para humilhação e morte, é sinal de que esses conceitos já perderam o sentido. Ser cristão não é postar versículo bonitinho de manhã; é viver o cuidado e a misericórdia com o próximo, amar a Deus e transformar esse amor em proteção concreta dos vulneráveis, como ensinou Jesus, julgado e morto pelos poderosos de sua época.

Indignação é olhar os números que pesam. A maioria dos homicídios no Brasil não é esclarecida. Em 2024, foram 44.127 mortes violentas intencionais. A curva caiu, mas o patamar segue inaceitável. Estatística que melhora não corrige o essencial. Vidas continuam valendo pouco neste país.

Indignação porque a imagem grita dolorosamente. Na charge do Duke, publicada na terça, 12, aqui na Itatiaia, Laudemir aparece chegando ao céu, de uniforme e vassoura na mão. Uma voz divina o acolhe e diz: “Vem, meu filho, deixa o lixo humano para a Justiça recolher”. Para quem não viu, o recado é claro: vida de trabalhador não é lixo; lixo é o crime e o seu autor.

Indignação, agora, é transformar luto em prática. Educação para o trânsito que desarme a vaidade. Fiscalização objetiva de condutas agressivas. Controle real sobre armas particulares. Protocolos de proteção a equipes que trabalham na via pública. Medidas simples. Inadiáveis. O nome dele era Laudemir. O que está em jogo é a medida que damos à vida humana. Se a Justiça falhar, a mensagem será devastadora. Se a Justiça funcionar, será um aviso claro de que, no Brasil, a vida tem valor.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.