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As tais casas de apostas: ao vencedor, as batatas...

Antes de cair na tentação do falso ganho fácil, melhor se atentar que podemos estar apenas sendo enganados por uma esperança fabricada

Apostas

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação.”

Eis o dilema narrado por Quincas Borba ao descrever a sua filosofia, a qual denominou de “humanitismo”, logo no sexto capítulo da obra de Machado de Assis (nosso aniversariante do mês) que leva o nome do personagem de um dos livros que mais me deixam com o riso escorrendo da boca.

Segundo o personagem, no caso descrito, a única solução possível é que uma das tribos se alimente integralmente das batatas, ainda que à custa da morte por inanição da outra. Assim, haverá um vencedor que comerá as batatas e um vencido que morrerá. Ou seja, ao vencedor, as batatas! O vencido perde, porque assim determina o princípio universal, segundo o qual, para uns sobreviverem, outros hão de sucumbir, já que a luta é a condição da existência, e o fruto dela pertence ao vencedor. Portanto, para que haja vida é preciso que outros seres sejam suprimidos, sendo esta uma condição universal e comum em todas as sociedades. Segundo sua teoria, “a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações” fazem com que a maldade seja completamente ignorada, pois o homem comemora, ama e defende o que lhe é aprazível ou vantajoso. Já o exterminado, esse não tem direito sequer à opinião, pois sua eliminação é um benefício social, pois há de se eliminar “os organismos fracos, incapazes de resistência”, num processo de higienização. Daí a sua conclusão: Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

Na lógica do personagem, no teatro da existência, as agruras da sociedade, como guerra, fome e miséria são formas de seleção natural, não merecendo nenhuma reprimenda, sendo uma lei da natureza, pouco importando se gera sofrimento ou gozo, “o que importa é que ele subsista”. Não é de causar ranger de dentes?

O leitor prudente – e não o julgo outro – percebe, desde logo, que há nisto, como é comum em Machado de Assis, mais do que conselhos, uma fina ironia, num desvelamento da sociedade. Com efeito, é uma crítica ao darwinismo social, excludente e competitiva, de uma lógica selvagem de aniquilamento do outro, pautada na legitimação do egoísmo, exploração e violência social. Para o autor, no modelo de sociedade atual (e olha que lá se vão mais de 100 anos!), a competição a qualquer custo, legítima o aniquilamento do outro. Disfarçado de autonomia da vontade, liberdade negocial e outras expressões, instala-se a barbárie social, segundo a qual naturalizamos a competição selvagem e suas práticas excludentes, em que a solidariedade é descartada, sob o mantra da seleção natural, de uma divisão entre ganhadores e perdedores, em que os competidores são livres para lutar como querem.

Fora da ficção e atualizando o tema, temos, por exemplo, as tais casas de apostas (muitas inclusive patrocinam clubes de futebol e programas de televisão), em que “influencers” dão uma série de dicas de como angariar fortunas nas apostas esportivas, normalmente ostentando carros e viagens, à custa de pouco sacrifício, frutos destas pseudovitórias. Essas apostas se transformaram em epidemia de saúde pública, movimentando quase 1% do PIB brasileiro e comprometendo em 20% o orçamento das famílias mais pobres, o que tende a aumentar – já que não temos uma regulamentação efetiva, ao contrário de outros países, como França e Espanha que proibiram a propaganda de apostas por influenciadores. Recentemente, a imprensa noticiou o caso de um conhecido jornalista que teria perdido todo o seu patrimônio nesses jogos, encontrando-se internado para se afastar do vício. Tudo isso parece estar revestido pela mística da liberdade de escolha, ou seja, as pessoas optam ou não por apostarem; em outras palavras, são livres para escolherem se arriscar entre o fracasso e a fortuna. Ora, há mesmo essa tal liberdade?

Vejamos: esta semana estreia a última temporada de “Round 6”, série que quebrou todos os recordes de visualizações no mundo. Nela, pessoas endividadas e sem perspectivas aceitam, “livremente”, participar de jogos infantis em que, em caso de vitória, lhes é prometida gigantesca sifra (“as batatas”) e, em caso de derrota, pagam com a própria vida. Após cada jogo, os vencedores progridem e os perdedores morrem, ou seja, tudo bem encaixado na alegoria das tribos famintas, em que o extermínio de uma é a vitória da outra. Logo na primeira temporada, um dos competidores resume com crueza:

“ - Lá fora nós éramos fracassados, mas, aqui, pelo menos podemos ser quem a gente é e tentar um destino diferente”.

Vejam a semelhança com o que diz o personagem Rubião, no livro aqui trabalhado, sobre a teoria do humanitismo:

- “Tão simples! tão claro! Olhou para as calças de brim surrado e o rodaque cerzido, e notou que até há pouco fora, por assim dizer, um exterminado, uma bolha; mas que ora não, era um vencedor. Não havia dúvida; as batatas fizeram-se para a tribo que elimina a outra, a fim de transpor a montanha e ir às batatas do outro lado. Justamente o seu caso.”

Daí se vê que, entre uma vida miserável e a possibilidade de ascensão, de “sair daquela vida”, vale a aposta, o risco pago com a própria existência. O leitor concordará que não há nisto nenhuma liberdade, mas a exploração do sonho, da miséria de um mundo em que para muitos a esperança já se acabou e que morrer pouco importa. É que o ser humano é capaz de tudo em situações extremas, até de entregar a própria vida. Amparado na livre opção/competição, no mérito e na liberdade, esconde-se a ganância, a astúcia e a opressão dos que estão sempre a ganhar. Vale para Round 6, vale para as casas de apostas de jogos... Em ambos, há “influencers vencedores”, propagando desinformação e promessas de enriquecimento, leia-se, acendendo charutos na miséria alheia.

Portanto, caro leitor, antes de cair na tentação do falso ganho fácil, melhor se atentar que podemos estar apenas sendo enganados por uma esperança fabricada, em que somos ludibriados a ponto de agradecer por coisas miseráveis que no fim das contas nos são subtraídas e não dadas, como no lirismo doloroso da música “Construção” de Chico Buarque:

“Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague.”

Ops. Este aprendiz assistiu apenas aos primeiros episódios de “Round 6”, já que a vida é curta e há de se selecionar bem o tempo... Todavia sua mensagem é clara — e seu sucesso, estrondoso. Aliás, com temática parecida, embora a mim me pareça mais aprazível, não obstante violento, o filme “O poço” (2020, Gael Gaztelu-Urrutia), disponível na Netflix, é bem perturbador. Além de fazer uma inteligente alegoria com o inferno de Dante.

Ops. Poderíamos trazer esta lente machadiana à guisa do momento conturbado por que passa o mundo, em que genocídios (aos vencedores, as batatas...) são vistos e documentados a olhos nus e silêncios absolutos, mas deixemos para outra ocasião.

Ops. O mês está acabando e com isso chega ao fim as festas juninas com suas gostosas barraquinhas, quitutes e bandeirolas. Uma pena! De todo modo, vale o dito por Rachel de Queiroz, em junho de 1946: “É bom não perder o costume; passa um São João, passa outro e a gente vai ficando velha. Adeus, São João. Como diz aquela cantiga. “Adeus, até para o ano,/ se Deus quiser e nós também”.

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.