“O bobo tem oportunidades de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoiévski.”
Li pela primeira vez a crônica de Clarice Lispector, “Das vantagens de ser bobo”, já no verdejar dos vinte, não obstante o texto ter sido publicado originalmente em 12 de setembro de1970, no Jornal do Brasil. Confesso que fiquei impactado com a maneira com que a autora apontava as características do “ser bobo‟ e do “ser esperto”. Afinal, o texto trazia uma visão oposta à concepção socialmente arraigada que via vantagens no esperto e desvantagens no bobo. Eu sempre ouvira que “o mundo é dos espertos”. Como Clarice é Clarice, coloquei-me na minha condição de aprendiz e tomei aquilo como uma lição de vida.
Hoje em dia, sinto que a esperteza tem aumentado muito, sobretudo porque nos preocupamos e nos impressionamos menos com o conteúdo e mais com a forma. Tentei dividir essa preocupação com o leitor, nos dois últimos textos, ao falar dos “tipos exemplares” e dos “coaches”. Como as ideias vão e vêm, decidi falar um pouco do bobo, daqueles que, ainda segundo Clarice, por não se ocuparem com ambições, têm tempo para ver, ouvir e tocar o mundo, pois provavelmente sejam os melhores profissionais. Talvez essa ideia também seja compartilhada pelo leitor de outras áreas, ao olhar para todos ao seu redor. Na minha vida jurídica, os melhores juristas com os quais trabalhei não eram falastrões ou exibidos. Pelo contrário, ao não se mostrarem demasiadamente, “sabem sem que ninguém desconfie” e, com isso, têm “oportunidades de ver coisas que os espertos não veem”. E a razão hoje me parece clara: “Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem se passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie.” E, ao fim e ao cabo, nem percebem que venceram...
Isso às vezes acontece no Direito, área em que alguns advogados têm adotado uma postura de ofender Juízes e Promotores de Justiça com a clara finalidade de impressionar as partes e os futuros clientes. E para isso muitas vezes se valem da esperteza, consistente em agredir membros do Poder Judiciário, seja em audiência ou nas redes sociais.
A questão é que essa postura normalmente não leva a resultados práticos bem-sucedidos, normalmente até prejudicando os clientes. Porém, impressionam e fazem com que muitas pessoas leigas vejam essa atitude como um gesto de coragem. Ao final dos processos, chegam até a serem parabenizados pelos bobos, os quais lhes fazem loas pelo exitoso fracasso! O problema é que o cliente fica prejudicado, sem nem se dar conta, enquanto o espertalhão continua fazendo seu marketing, vendendo-se em meio à tragédia alheia, como na passagem de Quincas Borba, de Machado de Assis (não consigo ficar muito tempo longe dele. Duas colunas é muito tempo):
“Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
– É minha, sim, meu senhor; tudo o que eu possuía neste mundo.
– Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original: “não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias”.
Portanto, caro leitor amigo, fique atento aos profissionais que acendem charutos nas misérias alheias, postando trechos cortados de audiências nas redes sociais, “lacrando” Juízes e Promotores de Justiça, alimentando currículos inexistentes, enxertando cursos pagos de uma semana em universidades no exterior, se autointitulando “Professor”, e por aí vai...
Obs. 1- Em tempo. Clarice nos faz uma importante advertência em seu texto: “não confundir bobos com burros”. Aí não. Ser inocente sim, mas burro não. Daí a importância do estudo, do esforço, de “ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas, pensando”, eu diria estudando...
Obs. 2- Com toda a imparcialidade do mundo, não é que essa tal de Clarice sabia das coisas, uai. Ela diz na crônica: “Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (...). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!”.
Esse fragmento do texto me lembra de outro, de José Batista de Queiroz, patrocinense, chamado “ser mineiro”. Partilho trecho:
“Ser Mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer, é fingir que não sabe aquilo que sabe, é falar pouco e escutar muito, é passar por bobo e ser inteligente, é vender queijos e possuir bancos.”
Se o leitor é mineiro, vá, não seja falso modesto, solte logo o sorriso de canto de boca...