Caro leitor,
O tempo é devastador, como bem percebemos a uma simples olhadela no espelho. Estão ali, às escancaras, os sinais da fugacidade da vida, revelados pela natureza humana, através de nossas rugas, do embranquecimento diário dos cabelos, quando não de sua perda. O poeta Mario Quintana (1906 – 1994), ao dizer que “a vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa”, foi cirúrgico, como só é possível pela literatura, ao sintetizar a brevidade da vida:
Quando se vê, já são seis horas!/ Quando de vê, já é sexta-feira!/ Quando se vê, já é natal…/ Quando se vê, já terminou o ano…/ Quando se vê perdemos o amor da nossa vida./ Quando se vê passaram 50 anos!/ Agora é tarde demais para ser reprovado…
Assim como acontece conosco, a fugacidade do tempo muda também os valores da sociedade, consequentemente os objetos de proteção pelo direito. Vejamos alguns casos:
No século XIX, era comum as pessoas tirarem fotografias com os parentes falecidos. Posicionava-se o corpo do morto em poses naturais e, ao seu lado, os parentes, muitas vezes com largos sorrisos. A prática era conhecida como fotografia post-mortem. Hoje, vez ou outra, alguns tentam reavivá-la.
Há algumas décadas, não era incomum a produção de brinquedos infantis extremamente tóxicos. Um caso que se tornou famoso foi o kit Laboratório de Energia Atômica Gilbert U-238, criado em 1950. O brinquedo possibilitava às crianças aprenderem a fazer armas nucleares, usando material radioativo real. Havia também o Kit de Exame de Impressões Digitais, em que os pequeninos utilizavam-se de luvas de látex, pincéis e lupas de verdade para que pudessem realmente vivenciar a experiência de um Sherlock Holmes. O problema era o pó para colher as impressões digitais, feito de amianto, substância extremamente cancerígena quando inalada e até manuseada.
Vejam o caso dos aviões. Na década de 70, eles eram bem menores e muito mais espaçosos. Os banheiros, além de amplos, podiam ser frequentados por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Nem me arrisco a dizer o que acontecia naquele espaço...
Quando eu era pequeno - na idade - era permitido fumar durante os voos comerciais. Resultado, o ar era infestado de fumaça e os cinzeiros dos braços das poltronas, um emaranhado de cinzas. A indústria do tabaco promovia, nas campanhas publicitárias, uma imagem positiva do cigarro, associando-o, pasmem!, à saúde, juventude e modernidade. Nessa época, nos filmes de Hollywood, normalmente os protagonistas fumavam com estilo, era inclusive, parte importante do charme do ator. Os comerciais de cigarro eram belíssimos, normalmente ligados ao esporte. Havia um que se encerrava com a frase: “Hollywood, o sucesso!”. As marcas e os atores competiam nos slogans:
- John Wayne: “Não posso correr o risco de pegar uma irritação na garganta”, dizia ele, “por isso fumo Camels - eles são suaves”.
Até o Papai Noel entrava na história: “O papai Noel prefere Camel”.
Todas essas condutas foram, após melhor compreensão de suas consequências, objeto de tutela pelo direito. Neste sentido, foram promulgadas leis, aprovadas pelo Poder Legislativo, a quem cabe elaborar as leis que manifestam a vontade do povo, vedando as condutas que colocavam em risco a saúde do cidadão, a dignidade do ser humano e tantos outros direitos essenciais a uma existência digna.
Já outras condutas, normalmente atreladas à convivência social, ainda persistem. Alguns anos após a inauguração dos bondes elétricos no Rio de Janeiro, em substituição aos com tração animal, Machado de Assis escreveu algumas crônicas. Uma delas, publicada em 04 de julho de 1883, chamada “Como comportar-se nos bondes”, além de bastante irônica, o que é quase um pleonasmo, quando falamos do Bruxo do Cosme Velho, é também bastante divertida e atual. O cronista qualifica o novo meio de transporte à época de “essencialmente democrático”, ocorrendo-lhe compor umas certas regras de convívio social para uso dos que frequentavam aquele meio de transporte, numa espécie de manual de etiqueta.
Nela se encaixa qualquer tipo de transporte utilizado nos dias de hoje. Entretanto, provavelmente Machado trataria da prestação de serviços defeituosos e não dos “encatarroados”, para quem ele dirigiu as primeiras recomendações: “podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama.”
Apenas entre 2018 e 2019, o número de viajantes aéreos aumentou 20%, no Brasil, já as demandas judiciais no setor aumentaram 109% no mesmo período. O que explicaria esse crescimento em progressão geométrica? Provavelmente a razão não decorre dos “amoladores”, para os quais Machado recomenda que “toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés”.
Nota-se que há uma nítida frustração entre a expectativa do usuário e o serviço ofertado, apesar de o art.6º do Código do Consumidor ser expresso ao considerar como serviço adequado aquele que satisfaça “as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”. No transporte aéreo, tornou-se quase praxe o extravio de bagagens, atrasos, remarcações e cancelamentos de voos, em que aos passageiros resta reunirem-se nos saguões dos aeroportos, em meio à ausência de informações e falarem ao leu. E agora, até queda de aviões em condições no mínimo mal explicadas...
Outro aspecto curioso: hoje cobra-se por tudo, desde a marcação do assento, como se fosse possível viajar sem um assento... Fico a imaginar qual sugestão Machado daria para o uso desses primeiros espaços que na sua crônica eram reservados “para a emissão dos perdigotos”.
No caso dos ônibus, principal modo de transporte público, e que tem um papel fundamental para a mobilidade nas cidades, a situação é ainda mais caótica. Neles, muitas vezes, sequer há espaços para uma mínima conversa. Bom, pelo menos Machado não precisaria recomendar aos passageiros para “quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.”
Perceba o leitor como Machado apresenta os casos com humor e ironia, trazendo reflexões sobre os comportamentos humanos cotidianos. Apesar de o tempo provocar mudanças de costumes, valores e comportamentos, os quais provavelmente levariam o escritor a tratar das más condições nos transportes e não dos comportamentos humanos, acho que um permanece completamente atual e alheio a qualquer alteração. É a regra destinada aos quebra-queixos, ou seja, aos fumantes. Segundo ela, “é permitido o uso de quebra-queixos em duas circunstâncias: - a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer”. Vale para os meios de transporte e qualquer lugar público. Simples assim...
Ops: Aqui não há nenhuma advertência aos leitores conhecidos. Salvo se estiverem agora a torcer-me o nariz. Neste caso, seria inútil desculpar-me.