Um quilo de frango desossado e ferventado sem óleo nem sal. Cinco bananas picadas para acompanhamento, já que os bichos rejeitam o mamão: esta é a janta dos lobos-guará que vivem no
Diariamente, por volta das 20h, os lobos são aguardados no pátio na entrada do Santuário para se saciar com o alimento preparado por padres e funcionários do Caraça. Sentados em cadeiras no pátio, cerca de 20 turistas esperam a chegada do lobo e guardam um silêncio nervoso e depois maravilhado pela proximidade com o animal selvagem.
Na noite que a reportagem da Itatiaia passou no local, há uma semana, a fêmea foi quem se aproximou. Sampaia - batizada em homenagem às “sampaias”, mulheres descendentes de escravizados que moravam na região e trabalhavam no Caraça - é arisca, dá uma bocada na panela de metal e corre para a escada atenta a uma rota de fuga. Ela volta ao frango com banana e repete a cena, encantando a família do médico Vinicius Malaquias, que se hospedava ali pela primeira vez.
Santuário do Caraça tem estilo neogótico
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“Estávamos na expectativa de ver o lobo. É fantástico, ele é enorme”, diverte-se. A filha mais velha, Ana Júlia, de 7 anos, lembrou de uma foto do guará comendo carne. “Tava cheio de banana no pote, no começo achei meio estranho. Mas não fiquei com medo”, garante.
Sampaia desce as escadas e some na escuridão: quem pensa que a visita acabou se depara com o retorno minutos depois para terminar de devorar o resto das bananas na panela.
Esta é a fêmea porque traz no pescoço uma coleira vermelha com geolocalização, colocada por biólogos, que emite sinal com o paradeiro do bicho.
Oito gerações de lobos
Monitor do Santuário, Fernando José Ferreira conta que a ideia de alimentar os lobos que
Prato servido aos animais
“Hoje há dois indivíduos vindo aqui, a Sampaia, de sete anos, e o Zico, de cinco” - o nome é uma homenagem ao padre precursor. A idade dos guarás é calculada pelas características dos dentes. Zico, que não deu as caras nesta noite, ficou uma semana sem aparecer.
“O
Dois filhotes, Vicente e Francisco, nasceram neste ano e aprenderam com os pais a subir a escadaria, mas sumiram desde o incêndio - o pescoço do filhote não comporta a coleira, por isso o paradeiro é incerto. Os biólogos acreditam que podem ter sido mortos pelo fogo ou expulsos da área pelos pais.
“Eles são o topo da cadeia alimentar, aqui não há predador natural. Normalmente não deixam outro entrar no seu território, não caçam juntos, andam em trilhas separadas. Os guarás só se encontram para acasalar e cuidar de filhotes. Mas aqui no Caraça se alimentam juntos”, destaca Francisco, lembrando que os guarás não atacam humanos.
“Ele vai te olhar e esperar sua reação. Mas é muito difícil encontrá-los em uma trilha de dia, pois têm hábitos noturnos e chegam a andar 30 km em busca de caça”, ensina.
Ele nota que as orelhas do guará giram cada uma para um lado enquanto come. “É a audição aguçada para captar movimentos e ameaças”, aponta o monitor.
Vermelho
O guará, cujo nome significa “vermelho” em tupi-guarani, tem o corpo dourado e as patas pretas, como se calçasse meias longas. É o maior canídeo da América do Sul, chegando a um metro, e tem 30 kg. A anta, maior mamífero do continente, com o dobro de tamanho e até 300 kg, também costuma aparecer para a janta na escadaria do Caraça. Sinal que os “gigantes” do Cerrado e da Mata Atlântica encontraram no Caraça biodiversidade necessária para se alimentar e reproduzir. Prova disso é que os funcionários desconfiam que Sampaia esteja em uma nova gestação - em meados de janeiro ela já pode aparecer com mais filhotes.
* A reportagem viajou para as regiões de Entre Serras da Piedade ao Caraça, Serro e Diamantina a convite da Secult/MG