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‘A gente virou uns bichos perigosos, a água tem medo da gente’, diz Ailton Krenak

Filósofo, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras conversou com a Itatiaia sobre exposição em cartaz no CCBB-BH e livro infantil que lançou

Ailton Krenak, escritor, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras

Do estúdio da rádio à sala da entrevista, o imortal de 71 anos deu alguns passos firmes com sua sandália de couro, carregando uma pequena bolsa de pano. Ele sorri, cumprimenta e se senta em uma cadeira. “Eu só consigo fazer uma coisa de cada vez”, alerta o escritor, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras e um dos líderes da etnia Krenak. Ele esteve em Belo Horizonte para promover a exposição Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak, que fica no CCBB até dia 30 de novembro, e lançar o livro Kuján e os meninos sabidos, escrito por ele e ilustrado por Rita Carelli, publicado pela Companhia das Letrinhas.

Na conversa, comentou sobre o aniversário recente, quando fez um piquenique em uma ilha do Rio Doce, junto com Hiromi Nagakura, a tradutora Elisa e os jornalistas Juliana Perdigão e Odilon Amaral. Em certo momento, ele teve a ideia de gravar um podcast, que chamou de ‘O podcast do fim do mundo’, que promete lançar em breve. "É trash”, alertou, pois fala da situação do Rio Doce após o rompimento da barragem de Fundão, gerenciada pela Samarco, e da crise ambiental global.

Ailton Krenak narra, no seu primeiro livro infantil, o encontro entre o criador e suas criaturas. Na história, o criador resolve voltar à Terra e, para isso, assume a forma de um Kuján, um tamanduá. Na aldeia, logo ele é caçado para virar alimento, mas dois meninos sabidos percebem e interferem na situação.

Se chegasse à nossa aldeia hoje, o criador não teria uma sorte muito diferente. “Nós estamos vivendo no mundo em desordem uma espécie de caos ambiental”, define Krenak na entrevista à Itatiaia que você lê abaixo.

Sobre a situação ambiental atual

Nós estamos vivendo no mundo em desordem uma espécie de caos ambiental. Se a gente for um além de um ponto e meio acima na temperatura Global, aquecendo, aquecendo, aquecendo, nós não vamos mais ter agricultura. As laranjas, as bananas, os frutos que a gente se acostumou a usar, o inhame, a batata, essas coisas que nós consumimos na nossa dieta, o arroz, o feijão, isso vai deixar de existir. A Terra precisa estar saudável para ela produzir vida. Se nós estamos adoecendo o solo e as águas, como nós pretendemos continuar comendo e bebendo o que a Terra dá? Eu digo que a Terra vai dar uma torcida na gente. Quem sobrar, sobrou.

Sobre revisitar a expedição à Amazônia 30 anos depois

Eu sinto que nós estamos perdendo vertiginosamente a qualidade da vida. Eu estou em Belo Horizonte, para a exposição e para o livro. Eu às vezes acordo de madrugada e abro a janela para respirar e eu sinto que o ar que vem lá de fora é pior do que o que tá lá dentro. Se o ar que tá lá fora é pior do que o que tá aqui dentro, porque aqui a gente fica filtrando ele, resfriando ele, é porque nós estamos habitando uma Terra que já está ficando inabitável.

Tem um livro de um jornalista americano, chamado David Wallace-Wells, o título do livro é “A Terra inabitável”. Ele conta 23 cenários de mundo, onde nós, os humanos, teríamos que usar equipamentos feito astronauta para ficar vivos aqui, andando por aqui, por que o ar não vai ser mais possível de respirar. Um dos cenários é esse. O outro é do mundo pegando fogo. São 23 cenários, todos distópicos. Assim, apavorante. Eu não gosto de apavorar as pessoas com profecias de fim de mundo. Mas teremos um podcast para falar sobre isso (risos). [referindo-se ao podcast do fim do mundo, citado na abertura da reportagem].

Mas visitem a exposição no CCBB, que é muito bonita, as imagens são lindas e dá saudade da Amazônia. Dá saudade daquelas comunidades onde as crianças vivem sorridentes, brincando, pulando na água. Hoje muitos deles não tem água pra pular. O Rio Solimões, se você olhar a imagem dele, tem barco encalhado dentro do dentro da calha do rio. Eu nunca imaginei um rio amazônico seco, nunca imaginei. Se alguém me dissesse que um dia ia ver o Solimões sem água, ia falar para não exagerar.

Sobre politica, eleições municipais e direitos dos povos originários

Parece que as eleições municipais nunca foram tão decisivas quanto é agora, no Século 21, né? A própria ideia, na cultura brasileira, de Municipal era uma coisa diferente. Que era pequeno o municipal. Mas hoje, o que acontece no município é determinante pro que acontece no resto da vida do país - no estado, na Federação.

Então as pessoas deviam prestar muita atenção quanto ao voto em vereador, em Prefeito Municipal, porque se você pensa que você tá fazendo uma coisa que é só no seu local, você está enganado. Você está animando um grande processo de representação política, de pessoas que na maioria das vezes não querem o bem para você, nem para sua família. Você vai dar o seu voto e talvez esse alguém que vai derrubar sua casa amanhã. Escolha com muito cuidado.

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Sobre futuro ancestral

Um processo que sempre esteve aí e que hoje a gente despreza é o ensinamento e a memória. Por isso a gente agride tanto a natureza sem entender que a gente está agredindo a nós mesmos, o nosso futuro. É a ideia de que meu corpo e o seu corpo são separados da Terra, do ar, da chuva. Essa ideia artificial. Nós somos isso. Nosso corpo é terra, é água, é cálcio, é material da Terra. Quando a gente dissociou o nosso pensamento de pertencer à Terra, a gente começou a estragar tudo, né? Esse futuro ancestral, ele sempre esteve presente para nós. Só que a gente nem tava aí, assim como a gente nem tava aí para um ar puro, para uma água maravilhosa.

Eu me lembro que na infância a gente bebia pedia água na casa de alguém, uma caneca de água. E a gente bebia água e falava: “Nossa, como que essa água de vocês é boa!”. A gente sabia distinguir até o gosto, o o sabor maravilhoso de uma água. Tinha água que era mais salobra, água que era mais ferruginosa e tinha uma água que você tomava e parecia que você tava tomando alguma coisa mágica, né? Aí o pessoal dizia “Ah, não é nada, é uma cisterna que tem aqui em casa”. Hoje ninguém mais tem cisterna. A gente perdeu muito a qualidade das coisas. Nós estamos bebendo água engarrafada, água de torneira, água de barragens e estamos maltratando o ecossistema terrestre de uma maneira que daqui a pouco nós é que vamos sobrar.

Sobre ‘mudança de chave’

Eu acho que algumas pessoas acontece, mesmo, de mudar. Só que eu não tenho mais esperança de acontecer amplamente. Eu acho que vai continuar sendo mudança de algumas pessoas. O que é uma pena, porque a mudança de alguns de nós não altera muito a ordem das coisas.

Quer dizer, se a metade de nós, no planeta, mudarmos as nossas escolhas, a gente ainda vai demorar muito para voltar a ter algum equilíbrio nisso que a gente chamou de uma agricultura, a água dos rios. Tem aquela canção linda da família Caimmy, não sei se do Dori ou do Danilo, que tem uma frase que diz “a água do rio tem medo de gente”. A família Caimmy que tem aquela foz que por si só já é música e canta isso. Imagina! A água do rio tem medo da gente. A gente virou uns bichos perigosos, a água tem medo da gente.

Rio Doce, o nome da música.

Uma citação (veja no vídeo da abertura da matéria a leitura de Krenak para essa citação)

Ah, será que nós vamos conseguir, antes de encerrar, deixar essa pequena citação do livro “Futuro Ancestral”?

Nesta invocação do tempo ancestral, vejo um grupo de 7 ou 8 meninos remando numa canoa. Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo na superfície da água com muita calma e harmonia. Estavam exercendo a infância deles, no sentido do que seu povo chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, mais velho, que estava verbalizando a experiência falou: ‘nossos pais dizem que nós já estamos chegando perto de como era antigamente’.

Voltar a alguma experiência de antigamente é tudo o que a gente podia fazer de melhor.

Serviço - Exposição Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak

  • Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak
  • De 02/10 a 30/11
  • CCBB-BH, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte
  • De Quarta a segunda, das 10h às 22h
  • Entrada gratuita, com retirada de ingresso
  • Mais informações neste link

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Coordenadora de jornalismo digital na Itatiaia. Jornalista formada pela UFMG, com mestrado profissional em comunicação digital e estratégias de comunicação na Sorbonne, em Paris. Anteriormente foi Chefe de Reportagem na Globo em Minas e produtora dos jornais exibidos em rede nacional.
Enzo Menezes é chefe de reportagem do portal da Itatiaia desde 2022. Mestrando em Comunicação Social na UFMG, fez pós-graduação na Escola do Legislativo da ALMG e jornalismo na Fumec. Foi produtor e coordenador de produção da Record e repórter do R7 e de O Tempo