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Padre Samuel Fidelis | Por que Aparecida é negra?

Celebrar a Padroeira do Brasil é mais do que alegrar-se por um feriado ou nutrir uma relação afetiva com o Santuário ou com a dimensão materna da devoção

Pensemos em que medida a fé e o amálgama cultural brasileiros são profundamente devedores das dimensões de ancestralidade próprias das culturas africanas

O Brasil é negro. É bom pensar nisso, não apenas do ponto de vista quantitativo — 55,5%, conforme dados do último censo —, mas também das raízes. Trata-se da consciência de que a matriz afro é o lugar de onde decorre não só o nosso tom de pele, mas também nosso ritmo, nossa linguagem, nossa religiosidade, nosso afeto, nossa alma.

Um dos sinais mais emblemáticos disso é o fato de a Padroeira do país ser uma representação negra de Maria! A perspectiva aqui se expande muito além do universo católico, eu diria. Para nós, católicos, há a convicção da íntima relação entre Maria e o Mistério da Salvação em Cristo. Ninguém como ela esteve tão unida a Jesus: desde o primeiro momento, quando, como mãe, lhe empresta as fibras do próprio corpo — pois, biologicamente, o corpo de Cristo é carne de Maria —, até a solidariedade ao seu sofrimento.

Lucas (cap. 1) destaca que, na entrega de Cristo, uma espada transpassa a alma de Maria; João a apresenta como a nova Eva (“Mulher!”), junto à cruz (Jo 19). Particularmente no Brasil, ela assume feições negras — os traços da resistência e da exclusão.

Não é coincidência: é delicadeza divina, é expressão genuína da alma do povo, que a Padroeira do Brasil seja negra. Negros são os úteros que deram à luz o Brasil — e isso hoje é muito claro para nós, inclusive do ponto de vista genético. Aparecida nos desafia, nessa perspectiva, a reconciliar-nos com nossa herança afro.

Sentimos muito orgulho de nossas raízes europeias. É “superchique” descobrir uma ascendência italiana, alemã ou francesa, ainda que distante. De igual modo, devemos ter orgulho das raízes vindas da África.

Na perspectiva de pensadoras como Lélia Gonzalez, chama a atenção como a nossa linguagem - nas palavras de afeto, sobretudo - expressa a presença e a força da resistência das mulheres negras. Essas mulheres deram à luz os filhos antes escravizados e, como mães legítimas, nutriram também a alma dos filhos das sinhás, contribuindo decisivamente para a constituição do país.

Expressões como cafuné, moleque, quitanda, dengo e fuxico deixam isso claro. Pensemos em caçula! Em outras línguas, o filho mais novo - geralmente o preferido, sabemos - é chamado de “benjamim”. Aqui, no Brasil, por influência preta, até no nome, “a rapa do tacho” tem mais chamego!

A celebração de Nossa Senhora Aparecida é sinal eloquente não apenas de fé, mas de inculturação. Isso, porém, não no sentido temido da simples mistura de crenças. Distinções são importantes para que os opostos não se confundam.

A perspectiva é a de um olhar mais atento à vocação do cristianismo para inspirar culturas e ser por elas irrigado. Se observarmos bem, ninguém se espanta com o fato de que tudo o que chega até nós acerca de Jesus e da Bíblia emerge da experiência rural da Palestina e assume, sobretudo em Paulo, os traços do pensamento greco-romana.

Nossas referências de fé e de humanidade estão, de modo fundamental, atravessadas por Jerusalém, Atenas e Roma. Mas há, como no livro do Gênesis (Gn 2,10-14), irrigando o jardim da vida, um outro rio cujas águas tendem a ser desprezadas: a África.

A fé cristã assumiu categorias filosóficas - o estoicismo, as perspectivas culturais greco-romanas - , ressignificando noções como a de padroeiro. Para os romanos, tratava-se dos deuses lares, divindades protetoras dos ofícios e das cidades, como Atena ou Hefesto. Nesse mesmo sentido, podemos compreender que a imagem de Nossa Senhora Aparecida - e o que ela simboliza - é um ícone da fé.

Pensemos em que medida a fé e o amálgama cultural brasileiros são profundamente devedores das dimensões de ancestralidade próprias das culturas africanas. Há uma profunda convergência entre essa perspectiva e as narrativas bíblicas do Deus que se apresenta como “Deus dos Pais” (Ex 3). Essa noção de Deus-ancestral talvez dialogue mais intimamente com a espiritualidade afro do que com o ideal heroico das tradições greco-romanas, centradas no culto aos heróis, e não aos ancestrais.

Reflitamos também nas dimensões rítmicas. Somos, hoje, provocados a pensar em que medida o pensamento platônico - com sua suspeita sobre o corpo como “cárcere da alma” - não criou ruído na perspectiva cristã do Verbo que se faz carne (Jo 1). Tanto nas narrativas bíblicas quanto nos ritmos africanos, o corpo é ponto de expressão irrenunciável das emoções, dos sentimentos e da subjetividade.

Reconheçamos ainda as noções comunitárias que se manifestam em expressões como Ubuntu (“eu sou porque nós somos”), uma concepção muito mais comunitária, inclusiva e universal de vivência - semelhante à fraternidade cristã - do que aquela idealizada pelo conceito limitado e, poderíamos dizer hoje, excludente de civilização entre gregos e romanos.

Celebrar a Padroeira do Brasil é mais do que alegrar-se por um feriado ou nutrir uma relação afetiva com o Santuário ou com a dimensão materna da devoção. É um ato de fé e de reconciliação histórica, que nos convida a reconhecer a presença divina que se revela também nas cores, nos ritmos e nos corpos do nosso povo.

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Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.