Ouvindo...

Oscar 2025: ‘Ainda Estou Aqui’ mostra a tortura que vai além do corpo

Longa de Walter Salles concorre em três categorias neste domingo e pode dar primeiro Oscar ao Brasil

‘Ainda Estou Aqui’ pode dar primeiro Oscar ao Brasil

A cena é comovente. A mãe e as filhas, em uma sorveteria, observam outras famílias nas mesas vizinhas. Ninguém precisa falar: a alegria banal dos outros contrasta com a tristeza silenciosa da família de Eunice Paiva (Fernanda Torres), que está incompleta e mutilada.

A ausência do marido, pai e amigo é uma presença constante para os personagens de ‘Ainda estou aqui’, filme dirigido por Walter Salles, que disputa neste domingo (2) o Oscar em três categorias: melhor filme, melhor filme estrangeiro e melhor atriz.

Ao contrário de muitos filmes que retratam a ditadura militar no Brasil, com cenas de tortura, perseguição e ataques físicos, ‘Ainda estou aqui’ traz uma outra ordem de violência: a psicológica, cruel com as vítimas impotentes diante de uma covardia e da indignação sufocada.

O filme de Walter Salles pode ser dividido em duas partes. Na primeira, vemos Rubens Paiva (Selton Mello) e sua rotina alegre e leve ao lado da família, com os dramas simples de um lar. Essa rotina é permeada pela tensão constante de Eunice, sempre desconfiada e contida.

O helicóptero observado por Eunice na primeira cena do filme, durante um banho de praia, passa distante, mas já é visto como incômodo e ameaça. No final de 1970, uma parcela da população brasileira já conhece os crimes da ditadura.

A ameaça se torna real em uma segunda parte do filme. De forma inesperada, Rubens Paiva (Selton Melo) é levado de casa por seis homens. Nenhum dos agentes militares é identificado, nenhuma explicação é dada. De súbito, Eunice perde seu companheiro e suas filhas perdem o pai.

Ainda em meio ao susto repentino do sequestro de Rubens, Eunice é levada ao quartel no dia seguinte, junto com sua filha Eliana (Luiza Kosovski), de 15 anos. Sem explicações ou sequer conseguir ver para onde está sendo levada. O telespectador é levado junto com Eunice. No escuro, sem ter o que fazer ou a quem recorrer.

Por cinco dias, ela é questionada sobre ‘ações clandestinas’ do marido e ligações com ‘movimentos terroristas’ - Vale lembrar que o ex-deputado nunca se envolveu com a luta armada. Liberada também sem explicação, Eunice inicia uma luta que duraria mais de duas décadas: sequestrado por agentes da ditadura em 20 de março de 1970, Rubens Paiva só foi reconhecido pelo Estado como morto em 1996. A causa da morte, no entanto, ainda é negada aos familiares.

De volta à sua casa, Eunice não tem uma explicação para os filhos - Marcelo (Guilherme Silveira), Ana Lúcia (Bárbara Luz) e Beatriz (Cora Mora) -, que passam a dividir com ela o peso da injustiça e o sofrimento da ausência de Rubens.

Vítima da ditadura, Eunice Paiva se recusa a assumir esse papel e junta forças para lutar pelos seus direitos e de sua família. Aos 48 anos, se forma em Direito e passa a atuar na defesa dos direitos humanos.

A cena é comovente. Eunice Paiva (agora vivida por Fernanda Montenegro), já bem velhinha e com Alzheimer, está em uma cadeira de rodas e reconhece Rubens em uma reportagem na televisão. Os parentes estão no jardim da casa em clima de descontração. O olhar de Eunice transmite todo o sofrimento de décadas com a injustiça sofrida pela família. O olhar, no entanto, transmite também a resiliência de quem venceu a ditadura. Após décadas de mentiras e segredos do Estado, o Brasil finalmente conhece a história de Rubens e Eunice Paiva.

Leia também

Editor de Política. Formado em Comunicação Social pela PUC Minas e em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Já escreveu para os jornais Estado de Minas, O Tempo e Folha de S. Paulo.