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Música e religiosidade: Relembre canções brasileiras que falam sobre fé

O tema foi cantado em verso e prosa através dos mais variados ritmos, passando por samba, axé, MPB, toada e hino de louvor

Em 1974, Beth Carvalho lançou o samba ‘Maior É Deus’, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, um hino de fé e esperança

Diante das adversidades, a fé é uma das características mais fortes do povo brasileiro. Quando o impossível aparece, nos apegamos em milagres e convertemos a desilusão em esperança. Claro que o tema foi cantado em verso e prosa na música brasileira, passando, inclusive, plena interpretação de hinos sacros. Mas os nossos compositores também souberam verter, à sua maneira, esse sentimento tão nosso e universal, inclusive através da festa e do sincretismo religioso. Fato é que a fé e a esperança nos perseguem continuamente, por meio de belas notas, acordes e poesia. Cantar com fé!

“Ave Maria” (hino de louvor, 1859) – Gounod e Bach

Charles Gounod, compositor francês famoso por suas óperas e músicas religiosas, se valeu de um prelúdio composto por Johann Sebastian Bach cerca de 140 anos antes para criar uma das mais famosas peças de adoração e louvor à Ave Maria. De forma indireta, unia-se assim, através da música, um compositor protestante a outro batista. A “Ave Maria” de Bach e Gounod foi publicada pela primeira vez em 1859, em latim, e, ao longo dos anos, foi interpretada por músicos de diferentes segmentos, do popular ao erudito, passando pelo instrumental, como no caso do cavaquinhista Waldir Azevedo. Elba Ramalho, profundamente ligada às celebrações sacras, também a cantou, assim como emprestou sua voz de leoa do norte para a “Ave Maria” de Schubert.

“Faz Escuro Mas Eu Canto” (samba, 1966) – Monsueto e Thiago de Mello

Intitulado “Manhã de Liberdade”, o álbum lançado por Nara Leão em 1966 avisava, na capa, que “A Banda” estava presente. “Faz Escuro Mas Eu Canto”, parceria do poeta Thiago de Mello com o multimídia Monsueto, “Ladainha”, de Gilberto Gil e Capinam, “Funeral de Um Lavrador”, poema de João Cabral de Melo Neto musicado por Chico Buarque, também compunham o repertório.

“Nara não estava preocupada em fazer sucesso. Queria ser ouvida, mas não admitia ingerências”, avalia o biógrafo da cantora, Tom Cardoso. Renato Contente, autor de “Não Se Assuste Pessoa! – As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar”, havia pensado em batizar o livro de “Faz Escuro Mas Nós Cantamos”, música que Elis gravou durante a fase que ele denomina nacional-popular, inspirada em versos do poeta Thiago de Mello. O título da canção é uma demonstração inquestionável da fé inabalada em um amanhã melhor.

“Maior É Deus” (samba, 1974) – Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro

Beth Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de maio de 1946, e morreu na mesma cidade, no dia 30 de abril de 2019, às vésperas de completar 73 anos, após uma longa batalha contra lesões na coluna que a levaram a se apresentar, inclusive, deitada.

Uma das maiores cantoras da música brasileira, Beth Carvalho ficou conhecida como “A Madrinha do Samba”, por seu envolvimento com o gênero e a descoberta de nomes do quilate de Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Almir Guineto, Arlindo Cruz, dentre outros.

Entre os maiores sucessos de sua carreira destacam-se “Camarão Que Dorme a Onda Leva”, “Vou Festejar”, “Coisinha do Pai”, “Andança”, “Folhas Secas” e “1.800 Colinas”. Em 1974, Beth lançou, no LP “Pra Seu Governo”, o samba “Maior É Deus”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, reafirmando a fé e esperança na força do povo brasileiro. A música foi regravada por ela no ano de 1979.

“Amar Como Jesus Amou” (religiosa, 1974) – Padre Zezinho

Nascido em Machado, no interior de Minas, e filho de violeiro, José Fernandes de Oliveira, conhecido como padre Zezinho, nunca escondeu o fascínio pela música. Aos 23 anos, já nomeado padre, começou a compor. Uma década depois, em 1974, registrou em disco um de seus grandes sucessos. “Amar Como Jesus Amou” fazia parte do álbum “Histórias Que Eu Conto e Canto”, pioneiro no uso de instrumentos como guitarra e bateria na música religiosa. “Amar Como Jesus Amou” recebeu regravações do cantor José Cid e do padre Marcelo Rossi. Mas foi em 2014, quando Fernanda Takai se juntou ao padre Fábio de Melo, que ela recebeu uma versão diferenciada. A vocalista voltou a interpretá-la em 2017, renovando sua fé na música.

“Romaria” (toada, 1977) – Renato Teixeira

Elis Regina estava grávida de sete meses quando pisou no palco do “O Fino da Música”, série de shows idealizada por Zuza Homem de Mello, para cantar “Romaria”, composição até então desconhecida que se tornaria um de seus maiores sucessos. Elis conheceu Renato Teixeira, autor da música, durante a passagem por um estúdio de São Paulo ao lado do marido, César Camargo Mariano. A toada teria os versos elogiados pelo poeta concretista Augusto de Campos, e colocaria Renato Teixeira e a chamada música caipira e sertaneja imediatamente no radar da MPB, graças ao faro para novidades de Elis Regina. A música é um hino de fé à religiosidade brasileira.

“Andar com Fé” (MPB, 1982) – Gilberto Gil

A Bahia deu a Gilberto Gil régua e compasso e, aos 80 anos, ele continua mandando aquele abraço. Ícone do Tropicalismo, dono de sucessos inesquecíveis, vencedor de prêmios no mundo inteiro e recentemente nomeado membro da Academia Brasileira de Letras, Gilberto Gil é, sem dúvida nenhuma, um dos maiores nomes da música brasileira.

As músicas “Louvação” e “Procissão”, respectivamente primeira e última faixa do primeiro LP de Gilberto Gil, lançado em 1967, revelam a ligação do compositor com a espiritualidade e as manifestações religiosas que apareceriam em outros momentos marcantes de sua carreira, como em “Se Eu Quiser Falar Com Deus”.

Outro caso emblemático é o da canção “Andar Com Fé”, que se converteu em hino de determinação e esperança. A música foi lançada pelo compositor em 1982, no bem-sucedido disco “Um Banda Um”, e recebeu a regravação inesquecível do Skank…

“Oração pela Família” (religiosa, 1990) – Padre Zezinho

Muito antes de Padre Marcelo Rossi e Padre Fábio de Melo, a “família de padres da música brasileira”, por assim dizer, conheceu com enorme sucesso o Padre Zezinho, mineiro da pequena cidade de Machado, no interior do Estado.

Entre os hits musicais do líder religioso estão “Te Amarei, Senhor”, “A Ti Meu Deus”, “A Barca (Pescador de Homens)”, “Cantar a Beleza da Vida” e “Amar Como Jesus Amou”, regravada por Fernanda Takai em 2014.

O rol também compreende “Oração pela Família”, lançada em 1990. Nela, Padre Zezinho realiza uma prece em forma de canção em prol de todas as famílias do mundo. Em 2002, Joanna gravou essa linda canção de fé, e, em 2011, dedicou um álbum inteiro às canções de Padre Zezinho, reforçando a sua devoção.

“Meu Menino Jesus” (canção, 1998) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos

Roberto Carlos enfrentava um dos momentos mais difíceis de sua vida com o agravamento do câncer de sua esposa, Maria Rita, quando entrou em estúdio para gravar o álbum de 1998. A religiosidade que sempre acompanhou o cantor tornou-se ainda mais presente nesse momento de provação. É desse repertório “Meu Menino Jesus”, uma sensível parceria com o amigo de fé e irmão camarada, Erasmo Carlos. Com o arranjo à altura do talento vocal de Roberto Carlos, a música reflete sobre o milagre que acontece na noite de Natal, com o nascimento do menino Jesus, e foi regravada por Cláudia Leitte e pela cantora Célia, no álbum “Natal Bem Brasileiro”, de 2008, com emotividade.

“Festa” (axé, 2001) – Anderson Cunha

Ela é a estrela que há mais tempo reina na música brasileira. Recordista de vendas, sucesso de Norte a Sul do Brasil, Ivete Sangalo arrasta multidões em trios elétricos com a mesma gana e força que recebe elogios dos críticos mais elevados, ao cantar sentada em um banquinho com violão ao lado de Gilberto Gil e Caetano Veloso.

Não é exagero constatar que Ivete pertence ao panteão das grandes cantoras da música brasileira, numa linhagem que vai de Elis Regina a Maria Bethânia, passando por Daniela Mercury, Nara Leão e Simone.

Em 2001, Ivete lançou o axé “Festa”, uma homenagem à fé e ao sincretismo brasileiro, mostrando que religiosidade também combina com alegria. A música fez tanto sucesso que o autor, Anderson Cunha, passou a incorporá-la em seu nome artístico. E se consagrou como hit eterno de Ivete.

“Arco-Íris” (MPB, 2021) – Ed Nasque e Raphael Vidigal

A delicadeza permeia todo o repertório de “Interior”, álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho.

Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós. A esperança está de volta. E a fé é uma arma fundamental nessa batalha contra a chuva.