Ouvindo...

Filme ‘A Baleia’, com Brendan Fraser, aborda intolerância religiosa e culpa

Dirigido por Darren Aronofsky, o longa-metragem assume a condição de melodrama sem descambar para a demagogia

Brendan Fraser, no papel de Charlie, encara um protagonista com obesidade mórbida num dos papéis mais dramáticos de sua carreira

“A Baleia” é um filme escuro. O protagonista, Charlie, é um homem com obesidade mórbida que vive acorrentado às sombras de seu passado. Essa condição aparece de duas maneiras no filme, tanto física quanto psicológica. Com cerca de 300 quilos, ele tem dificuldades para se locomover em espaços que, naturalmente, parecem oprimi-lo, o que é realçado pela respiração ofegante, ambas circunstâncias de seu peso.

Mas esse peso, logicamente, tem conotações de outras esferas que aquela que nos é mais aparente. Charlie confessa que sempre foi grande, porém, em determinado momento de sua vida, deixou a situação descambar. Eis, aí, o gatilho do filme: a perda de um ser amado. Como a figura de Charlie, o drama surge de relance, nas sombras.

Dirigido por Darren Aronofsky, “A Baleia” é um melodrama que não exagera na dose, a não ser pela insistente música que procura conduzir os sentimentos, embora busque pegar o espectador pela emoção. A escolha de Brendan Fraser para o papel principal injeta originalidade a um roteiro que já traz essa qualidade na própria persona de seu protagonista, e o ator demonstra que, como no caso de Jim Carrey, traz uma veia dramática até ontem não explorada devidamente.

A metáfora com o monstro assassino do histórico romance “Moby Dick”, de Herman Melville (1819-1891), também funciona, e, embora óbvia, serve para construir paralelos que são interessantes à narrativa. O asco e o medo que Charlie provoca nos poucos interlocutores que têm acesso a ele são comparados aos da baleia do conto de Melville. Pois todos desprezam Charlie.

Até ele, razão pela qual se desculpa continuamente. A exceção é a amiga Liz, vivida por Hong Chau, e que graças a seus conhecimentos como enfermeira fornece a Charlie os cuidados que ele se recusa a receber em um hospital. O homem carrega uma culpa que será exposta, principalmente, no confronto com um jovem missionário que pretende levar até ele a palavra de Deus. Acontece que advém do uso da religião os traumas de Charlie.

No principal embate do filme, fica claro que a fé, que deveria ser usada para professar o amor ao próximo, se transformou numa arma de preconceito e intolerância que só aceita um tipo muito específico de conduta, e renega ao sofrimento na Terra pessoas que não se encaixem nesses limites estabelecidos por uma espécie de seita. Interligada a esse drama, está a filha de Charlie, Ellie, e vivida por Sadie Sink.

Adolescente gótica e rebelde, ela se diverte maltratando os outros à sua volta, e não esconde a raiva que guarda dentro de si por ter sido abandonada pelo pai, que decidiu assumir um romance com outro homem. A mágoa e a frustração também são marcas de sua ex-mulher, que não está disposta a facilitar as coisas para ele.

Filmado, praticamente, em um único ambiente, adaptado de uma peça teatral de Samuel D. Hunter, que assina o roteiro, o longa se concentra no desempenho de seu time de intérpretes, que, em via de regra, consegue segurar e dar a contenção apropriada a relações conflituosas e dramáticas. Um mérito inegável do filme é abrir mão do maniqueísmo. Ainda que suscitem ações, e reações, monstruosas, todos, ali, são apenas humanos.

Charlie, um dedicado professor de inglês que se esconde atrás de uma câmera com o visor desligado para dar aulas à distância, repele o mundo exterior como pode, num esforço de autodestruição que cobra um preço alto, mas não consegue se livrar daquilo que o aprisiona num corpo que ele tratou de inchar ao máximo, pelo fato de ser, sobremaneira, um problema interno, embora o externo contribua. Incapaz de lidar com e de resolver as dores da perda, que, aliás, afetam toda a Humanidade, ele escapa para um passado feito de culpas.