Não é preciso tocar um instrumento para ser um grande músico. Que o diga o carioquíssimo Lamartine Babo, de quem, sobre sua relação com a festa mais popular do país, Braguinha disse: “Existe o Carnaval antes e depois de Lamartine”. Em marchinhas, valsas e sambas-canções, Lamartine puxa o desfile: “A tua pena não nega Lalá, tu és músico com louvor!”. Nascido no Rio de Janeiro, no dia 10 de janeiro de 1904, o músico morreu na mesma cidade, aos 59 anos, vítima de um infarto. Ao longo dos anos, suas músicas foram gravadas por Nara Leão, Maria Bethânia, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, dentre outros, inscrevendo seu nome em definitivo no panteão da nossa MPB...
“Canção para Inglês Ver” (foxtrote, 1931) – Lamartine Babo
O título da canção já diz tudo. “Canção para Inglês Ver” lança mão do espírito zombeteiro de Lamartine Babo, por meio de uma expressão que se tornou sinônimo de enganação, manobra ilusória. Lançada por Lamartine e regravada por Joel de Almeida, esse foxtrote ganhou uma versão impagável do conjunto As Frenéticas, no álbum “Babando Lamartine”, homenagem de 1980 ao compositor. A letra tira sarro e faz troça do deslumbramento dos brasileiros com o idioma estrangeiro, valendo-se do melhor estilo Lamartine, que rima “I Love You” com “Itapiru” e “Independence Day” com “Me Estrepei”. Uma joia popular!
“No Rancho Fundo” (samba-canção, 1931) – Ary Barroso e Lamartine Babo
Luiz Peixoto, Noel Rosa e Vinicius de Moraes foram alguns dos que tiveram o privilégio de compor com Ary Barroso. Acostumado a criar letra e música sozinho, ele abria raras exceções para parcerias. Numa dessas, Lamartine Babo resolveu se intrometer a mexer na letra de J. Carlos, sobre música de Ary. “Na Grota Funda” perdeu o título original e recebeu versos mais inspirados.
“No Rancho Fundo, bem pra lá do fim do mundo, onde a dor e a saudade, contam coisas da cidade”. A canção gravada por Elisa Coelho, em 1931, passou a se associar indistintamente a lembranças de um lugar tranquilo e sereno que o tempo se encarregou de varrer. Nos anos seguintes foi regravada por Silvio Caldas e Isaura Garcia. Como resultado, Ary Barroso ganhou o desafeto de J. Carlos e presenteou a música brasileira com uma parceria consagrada.
“A.E.I.O.U.” (marcha, 1932) – Noel Rosa e Lamartine Babo
Lamartine Babo é ainda hoje tido como o grande compositor de marchinhas do país, graças a hits como “Linda Morena”, “Grau Dez”, “Hino do Carnaval Brasileiro” e “Rasguei a Minha Fantasia”, entre vários outros. Em 2017, a composição “O Teu Cabelo Não Nega” deixou de ser cantada por blocos de rua que denunciavam o caráter racista da marchinha. Mas em 1932, no auge do prestígio, ele se juntou a ninguém menos que o Poeta da Vila, em uma parceria que só podia acabar em festa. “A.E.I.O.U.” é uma marcha satírica, bem ao estilo de Noel Rosa e Lamartine Babo, que aborda o ambiente escolar. Ela foi lançada pela dupla, em um dueto impagável, e regravada por Maurício Pereira.
“O Teu Cabelo Não Nega” (marchinha, 1932) – Lamartine Babo & Irmãos Valença
Hábil observador dos costumes e com um humor próprio à sua época Lamartine Babo compôs, em 1932, a partir de um frevo dos irmãos pernambucanos Raul e João Valente recusado pela gravadora, e, originalmente, intitulado de “Mulata”, de que o carioca aproveitou parte da melodia e recriou totalmente a letra, por considerá-la excessivamente regional, ele mal poderia considerar que se tornaria uma das músicas mais repetidas nos carnavais seguintes, embora já contasse com certo sucesso.
A canção foi lançada por Castro Barbosa, da dupla com Jonjoca, e despertou o interesse de diversos cantores na ocasião, inclusive Almirante. Considerada em tempos posteriores de “politicamente incorreta”, como, aliás, boa parte das marchinhas do período, fosse pela característica maliciosa ou por retratar os hábitos e valores da década, “O Teu Cabelo Não Nega” está indiscutivelmente entre as obras mais consagradas de Lamartine. Em grande parte pela força e o ritmo de seu refrão.
“Infelizmente” (marcha, 1933) – Lamartine Babo e Ari Pavão
Choro de Joraci Camargo e Custódio Mesquita lançado por Carmen Miranda e Barbosa Júnior em 1937, a divertida “Quem É?” recebeu outras interpretações memórias. Em 1977, ela recebeu a voz e os gestos da dupla de intérpretes formada pelo humorista Grande Otelo e a cantora carioca Sônia Santos, em um especial para a Rede Globo que destaca a veia cômica da canção. Antes disso, porém, ela já havia sido redescoberta por Nara Leão, que a gravou no disco “Nara”, de 1968, ao lado de outras preciosidades como “Odeon”, de Ernesto Nazareth e Vinicius de Moraes, e “Infelizmente”, de Lamartine Babo e Ari Pavão.
“Linda Morena” (marchinha, 1933) – Lamartine Babo
Lamartine Babo é ainda hoje tido como o grande compositor de marchinhas do país, graças a hits como “Linda Morena”, “Grau Dez”, “Hino do Carnaval Brasileiro” e “Rasguei Minha Fantasia”, entre vários outros. Em 2017, a composição “O Teu Cabelo Não Nega” deixou de ser cantada por blocos de rua que denunciavam o caráter racista da marchinha. Em 1933, “Linda Morena” estourou no Carnaval carioca e contagiou todo o Brasil com a gravação de Mário Reis. “Linda morena, morena/ Morena que me faz penar/ A lua cheia que tanto brilha/ Não brilha tanto quanto o teu olhar”, galanteia o inspirado eu-lírico.
“Chegou a Hora da Fogueira” (marcha junina, 1933) – Lamartine Babo
Esta música de 1933 reúne, de uma só vez, vários astros da canção brasileira. Composta por Lamartine Babo foi lançada em dueto com Carmen Miranda e Mário Reis sob os arranjos de Pixinguinha. Por isso não espanta que seus versos e melodia tenham permanecido por tanto tempo no imaginário popular. “Chegou a hora da fogueira/ é noite de São João/ o céu fica todo iluminado/ fica o céu todo estrelado/ pintadinho de balão”. Foi regravada pelo palhaço Arrelia.
“Isto É Lá com Santo Antônio” (marcha junina, 1934) – Lamartine Babo
A fim de bisar o sucesso do ano anterior, Lamartine Babo compôs para 1934 outra marchinha junina, e chamou para gravar, novamente, a dupla Carmen Miranda e Mário Reis. Deu certo. A música que brinca com os milagres praticados por São Pedro, Santo Antônio e São João ficou entre as mais executadas. “Eu pedi numa oração/ao querido São João/que me desse um matrimônio/São João disse que não/isto é lá com Santo Antônio”, diz em versos.
“Uma Andorinha Não Faz Verão” (marcha, 1934) – Braguinha e Lamartine Babo
Imagine no que poderia dar o encontro dos dois maiores compositores carnavalescos do Brasil? Deu em “Uma Andorinha Não Faz Verão”. Originalmente composta por Braguinha e lançada pelo cantor Alvinho, em 1931, a marcha ganhou o reforço de Lamartine Babo, que, encantado com a primeira parte, resolveu modificar a segunda, tornando-a mais direta e simples. Lançada por Mário Reis, em 1934, renovou o seu sucesso e tornou-se um clássico instantâneo, que permaneceu animando os foliões durante muitos carnavais. O título vale-se de um conhecido ditado popular que ecoa até hoje.
“Rasguei a Minha Fantasia” (1935) – Lamartine Babo
Não é preciso tocar um instrumento para ser um grande músico. Que o diga o carioquíssimo Lamartine Babo, de quem, sobre sua relação com a festa mais popular do país, Braguinha disse: “existe o carnaval antes e depois de Lamartine”. Já em 1934, Lamartine comprovava a tese ao compor a marchinha “Rasguei a Minha Fantasia”, com o palhaço como personagem principal. A música foi lançada por Mário Reis um ano depois, em 1935, acompanhado pelos Diabos do Céu, e regravada com enorme sucesso pelas Frenéticas em 1980, no LP “Babando Lamartine”, o último com a formação original do grupo.
“Grau Dez” (marchinha, 1935) – Ary Barroso e Lamartine Babo
Ayrton Montarroyos, cantor pernambucano de 25 anos, foi um dos primeiros a se manifestar contra as reportagens da revista Rolling Stone e do jornal Folha de São Paulo que consideravam “inusitado, cômico e caseiro” o uso do prato-e-faca na live de Caetano Veloso. “Saber o que significa arrodear é difícil, não se sabe se no Nordeste tem algo além da seca e se em Manaus existe algo além de floresta e macaco. O negócio é ser ‘cool’. Quanto menos latino e mais americano melhor: nas bandas que se ouve, nas gírias que se fala, nas referências de tudo que se tem”, escreveu Montarroyos. Esse estrangeirismo já era apontado na marchinha “Grau Dez”, em 1935, de Ary Barroso e Lamartine Babo. A música foi lançada com enorme sucesso pelo cantor Francisco Alves.
“Janette” (marcha, 1936) – Assis Valente e Lamartine Babo
O título da canção já diz tudo. “Canção para Inglês Ver” lança mão do espírito zombeteiro de Lamartine Babo, por meio de uma expressão que se tornou sinônimo de enganação, manobra ilusória. Lançada por Lamartine e regravada por Joel de Almeida, esse foxtrote ganhou uma versão impagável do conjunto As Frenéticas, no álbum “Babando Lamartine”, homenagem de 1980 ao compositor. A letra tira sarro e faz troça do deslumbramento dos brasileiros com o idioma estrangeiro, valendo-se do melhor estilo Lamartine, que rima “I Love You” com “Itapiru” e “Independence Day” com “Me Estrepei”. Já na marcha “Janette”, parceria com Assis Valente, de 1936, os alvos são franceses.
“Cantores do Rádio” (marcha, 1936) – Braguinha, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro
A cada giro da roleta, os músculos da face se contraíam como se pudessem interferir no destino das fichas. O vermelho e o preto da peça metálica, talhada diretamente na madeira, brilhavam diante dos olhos ao rolar dos dados. Junto à esperança, escorria também o dinheiro dos apostadores. No carteado, eles não tiveram melhor sorte.
Resultado: de pileque, saíram de lá sem um tostão furado nos bolsos dos paletós, jurando terem visto no palco do Cassino da Urca a dançarina norte-americana Josephine Baker, a Vênus Negra, que, de fato, se apresentara. Já na rua, Braguinha, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro, se deram conta de que não tinham como pagar pela condução.
Foi então que o trio de ébrios teve a ideia de oferecer outra “moeda” ao trocador do ônibus. Os três garantiram, em uníssono, que eram cantores de rádio, e, para provar, afiaram o gogó e deram a partida na canção: “Nós somos os cantores do rádio/ Levamos a vida a cantar/ De noite embalamos teu sono/ De manhã nós vamos te acordar”.
Assim nasceu um clássico da música popular brasileira. A gravação original, feita em 1936, pelas irmãs Carmen Miranda e Aurora Miranda, ecoou pela primeira vez no filme “Alô, Alô, Carnaval”, um clássico das chanchadas brasileiras.
“Joujoux e Balangandãs” (marchinha, 1939) – Lamartine Babo
Lamartine Babo voltou à carga em 1939, desta vez propondo uma fusão entre dois idiomas. É o que realiza o título de “Joujoux e Balangandãs”, marchinha que combina a palavra francesa que significa “brinquedo” com a tipicamente brasileira “balangandãs”, penduricalho tradicional entre as baianas, cheio de tropicalidade. Tanto que também gerou o verso “quem não tem balangandã não vai no Bonfim”, de Dorival Caymmi. Voltando à canção de Lamartine, ela deu título a um espetáculo teatral e a um filme do mesmo ano, infelizmente perdido. O dueto original de Mário Reis e Mariah foi revivido por João Gilberto e Rita Lee.
“Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda” (valsa, 1941) – Lamartine Babo e Francisco Matoso
“Grande amor da minha vida…”, Tim Bernardes não deixa dúvidas, logo de cara, do que vem por aí: uma autêntica canção de amor, na tradição romântica da música brasileira. Tim, aliás, é um conhecedor privilegiado desse universo, o que pode ser constatado no trabalho moderno que ele desenvolve com a banda O Terno. Filho de Maurício Pereira, que fundou, com André Abujamra, o grupo Os Mulheres Negras, Tim já regravou a clássica valsa de Lamartine Babo, “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”, parceria com Francisco Matoso.
“Hino do Vasco da Gama” (marcha, 1943) – Lamartine Babo
Compositor dos hinos das principais agremiações do Rio de Janeiro, o carnavalesco e torcedor do América-RJ, Lamartine Babo, também assina o “Hino do Vasco da Gama”, uma típica marcha-exaltação de 1943. Além das conquistas dentro de campo, o clube da colônia portuguesa tem uma importância histórica no cenário desportivo brasileiro, ao ter sido o primeiro a abrir as portas para atletas negros, quando o racismo convivia com uma naturalização atormentadora.
Ao longo da letra de Lamartine, ele cita dois esportes em que o Vasco se destacava, e que estão presentes nas Olimpíadas de Tóquio: o remo, onde o Brasil é representado por Lucas Verthein, já semifinalista; e o atletismo, em que a delegação brasileira conta com 53 atletas. “No atletismo és um braço/ No remo és imortal”, entoa o hino do Vasco.
“Hino do América-RJ” (marcha, 1943) – Lamartine Babo
Os quatro grandes clubes da cidade do Rio de Janeiro, além do à época popular, América, tiveram seus hinos compostos pelo não menos popular Lamartine Babo. Famoso pelas composições carnavalescas, mas também por peças românticas e valsas, sendo a mais conhecida uma parceria com Ary Barroso (“No Rancho Fundo”), não chega a ser espantoso o êxito de Lamartine nas duas frentes. Se formos prestar atenção existe um quê de glória, de exaltação, de alegria tanto no gênero da marchinha quanto no hino.
Pelo talento de Lamartine Babo, os torcedores de Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco entoam a plenos pulmões os versos de exaltação e glória, além dos resistentes e bravos apaixonados pelo América, clube de coração de Lamartine. Tim Maia emprestou como ninguém a potência da voz para celebrar essas músicas, com exceção do Botafogo, e legou registros impressionantes para os clubes cariocas. Ele, outro apaixonado e torcedor convicto do América-RJ, nos faz crer ser este o mais bonito dos hinos. Prova do poder da palavra e da intenção dos sentimentos.