O nazismo é pano de fundo do romance “Berlin Alexanderplatz”, de Alfred Döblin (1878-1957), adaptado para o cinema por Rainer Werner Fassbinder em 1980, mas é também da música “Galinha Verde”, creditada a José Gonçalves e André Gargalhada.
O José que aparece na autoria é, na verdade, Zé da Zilda, que começou a carreira artística conhecido como Zé Com Fome, lá nos anos 1930, e formou uma dupla na Rádio Educadora com outro tipo bem brasileiro, o Pente Fino, alcunha de Claudionor Cruz, mais tarde identificado pela valsa “Caprichos do Destino”, feita com Pedro Caetano, e gravada por Orlando Silva.
De volta à vaca fria – ou à “galinha verde” – a marcha composta por Zé da Zilda ganhou o mundo em 1943, na voz da cantora Marilu. Detalhe: o título era uma provocação aos simpatizantes do integralismo, o nazismo à brasileira, que eram então conhecidos como os galináceos de coloração esverdeada.
Isso em plena Segunda Guerra Mundial. Não foi a única estocada de Zé da Zilda nesse sentido. No mesmo ano ele gravou com a esposa, também de sua autoria, o samba “Fim do Eixo”, que se posicionava contra o bloco formado por Alemanha, Itália e Japão, e que acabaria derrotado na 2ª Guerra. Zé da Zilda fica ainda mais atual quando se constata que ele compôs “Guarda Essa Arma”.
Parceria com Jorge Gonçalves e Zilda, a marcha pregava o desarmamento durante a folia carnavalesca, prevendo que aquela combinação só poderia resultar em desastre. Homem preto do Rio de Janeiro, nascido no subúrbio de Campo Grande, Zé da Zilda lutava pela paz e pelo fim das discriminações, é o que se pode apreender de sua personalidade com estes sambas incomuns.
Filho de um músico, ele foi apresentado ao cavaquinho com cinco anos de idade. O instrumento foi a senha para que, morando no morro de Mangueira, se aproximasse de Cartola e Carlos Cachaça, tornando-se amigos inseparáveis, de golo e notas musicais. O trio gostava da vida boêmia carioca...
Já dominando também o violão, Zé da Zilda ingressou na companhia teatral Casa de Caboclo, a convite do bailarino Duque, onde começou a cantar sambas e emboladas. O sucesso o levou a ganhar um programa na Rádio Transmissora, e rendeu muito mais do que isso.
Foi quando uma cantora estreante tomou definitivamente o seu coração. A Dupla da Harmonia reunia Zilda e Zé, casados dentro e fora dos palcos, até serem rebatizados pelo radialista Paulo Roberto, da Rádio Cruzeiro do Sul. Nasciam, ali, o Zé da Zilda e a Zilda do Zé, casal de rara harmonia e ritmo na história da música brasileira.
Antes do matrimônio, Zé da Zilda já conhecera a aclamação popular com “Não Quero Mais Amar a Ninguém”, samba com os inveterados Carlos Cachaça e Cartola, cuja primeira versão, ainda sem a assinatura do último, tomara as avenidas no coro da Estação Primeira de Mangueira e, na sequência, com a interpretação de Aracy de Almeida.
Foi a primeira composição de Zé da Zilda registrada, em 1936, merecendo regravações de um sem número de cantores, como Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Ney Matogrosso, Elizeth Cardoso e Cartola. “Não quero mais/ Amar a ninguém/ Não fui feliz/ O destino não quis...”.
Empreendendo parceria com o mineiro Ataulfo Alves, em 1938, seu samba ganhou as ruas e o canto de Orlando Silva, no ápice da forma vocal, com “Meu Pranto Ninguém Vê”, que influenciaria nomes como João Gilberto, o Papa da Bossa Nova.
A admiração se confirmaria com “Aos Pés da Cruz”, derradeiro êxito comercial de Orlando, em 1942, que ressurgiu no disco de estreia de João Gilberto, “Chega de Saudade”, de 1959. Entre as curiosidades da música está a inserção da máxima do filósofo francês Blaise Pascal, unindo o erudito ao popular: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, dá a letra.
Composta por Marino Pinto e Zé da Zilda, “Aos Pés da Cruz” abordava a traição conjugal com ares bíblicos, tema pesado, suavizado pela interpretação de Orlando Silva, que não era dado a excessos, ao contrário de seus antecessores – Francisco Alves, Carlos Galhardo, Vicente Celestino, Silvio Caldas – e mesmo alguns contemporâneos e sucessores, casos de Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto, dentre outros.
Era a escola de Mário Reis, seguida por Lúcio Alves e Dick Farney. Não por acaso, “Aos Pés da Cruz” se tornou a música mais regravada de Zé da Zilda, angariando versões de Joyce, Noite Ilustrada, Miltinho e Elza Soares, e até uma instrumental de Miles Davis. Luxo...
O prestígio de Zé da Zilda pode ser comprovado com a participação no disco produzido pelo maestro britânico Leopold Stokowski, que conduzia sem batuta, em 1940, a convite de Heitor Villa-Lobos, e gravado no navio Uruguai com a presença de diversas estrelas brasileiras, como Pixinguinha, Cartola, João da Baiana, Jararaca, Donga, e etc.
O álbum foi editado nos Estados Unidos, pela gravadora Columbia, com um samba-de-breque e um maxixe de Zé da Zilda e Zilda do Zé. A relação com o Carnaval se intensificou na década de 1950, quando Zé e a esposa estouraram com a marchinha “Saca-Rolha”, um arraso...
“As águas vão rolar/ Garrafa cheia eu não quero ver sobrar/ Eu passo a mão no saca-saca-saca-rolha/ E bebo até me afogar...!”. Os versos dessa canção etílica, prenhe de uma alegria esfuziante, incontrolável, não deixam passar em branco a situação que as enchentes provocavam no Rio de Janeiro, cenário imutável, aliando o espírito extravagante da folia com a crítica social presente nos sambas de morro. Lançada em 1954, a marcha segue cantada até hoje a plenos pulmões pelos foliões. Tristemente, Zé da Zilda morreu no mesmo ano...
Vítima de um derrame cerebral, o músico ficou em coma durante 24 horas, até que o jornal “O Globo” noticiou, com reverência e consternação: “entrou em luto o samba nacional ao confirmar-se a notícia triste: faleceu Zé da Zilda, que na linguagem musical proclamava que ‘o mundo inteiro não valia o seu lar’, e que tornara amarguras da vida carioca em reclamação melodiosa no sucesso ‘Saca-Rolha’, do último Carnaval. Contava ele com 46 anos de idade”. Resignada, a viúva Zilda do Zé gravou, em homenagem ao marido, o samba “Vai Que Depois Eu Vou”, registrado em 1955 no estúdio, e lançado em 1956...
Com a mesma toada, ela interpretou “Vem me Buscar”, também em 1956. Era o capítulo final de uma trajetória prestigiada em vida, mas que depois entrou num inabalável esquecimento. Talvez pela morte precoce. Companheiros de geração, como Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho e Candeia, só seriam resgatados na maturidade.
Zé da Zilda não viveu para ver o samba voltar a seu lugar de destaque, como merecia. Mas a esposa, Zilda do Zé, tratou de mantê-lo vivo para os que o conheciam de perto. Ela morreu em 2002, aos 82 anos. Nesse ínterim, Zé da Zilda foi cantado por Emilinha Borba, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Angela Maria, Jorge Veiga, Célia, Rosa Passos, e pelo povo. E para quem não sabe, foi parceiro até de Chacrinha. O Zé da Zilda.