Maria da Graça assinou o primeiro compacto com o nome de batismo, mas, já ao dividir o LP “Domingo”, com Caetano Veloso, em 1967, e participar de “Tropicália ou Panis et Circencis”, de 1968, passou a atender por Gal Costa. Nascida em Salvador, no dia 26 de setembro de 1945, a cantora que nos deixou nesta quarta (9), aos 77 anos, se consagrou como uma das maiores cantoras da história da música brasileira, tanto pela afinação quanto pelo timbre de voz cristalino. Ao longo desta carreira, Gal gravou mais de 40 álbuns.
Entre seus sucessos estão músicas como “Festa do Interior”, “Bloco do Prazer”, “Meu Nome É Gal”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Um Dia de Domingo”, “Baby”, “Chuva de Prata”, “Vapor Barato”, “Pérola Negra”, e muitos outros. Musa da Tropicália, Gal homenageou Ary Barroso e Dorival Caymmi, e passou a um repertório popular sem abrir mão da qualidade, gravando músicas de Chico Buarque, Moraes Moreira, Cazuza, Michael Sullivan, Tom Zé e Caetano.
“Balancê” (marcha, 1936) – Braguinha e Alberto Ribeiro
A marchinha “Balancê” é a primeira das grandes gravações de Gal Costa que serviu de trilha sonora para o Carnaval brasileiro pré-axé music. A regravação do sucesso de Braguinha e Alberto Ribeiro, lançado por Carmem Miranda em 1936, foi o grande sucesso da folia de 1979. Era o ponto alto do show de maior sucesso comercial de Gal, “Gal Tropical”, que ficou um ano em cartaz. “Quando por mim você passa/ Fingindo que não me vê/ Meu coração quase se despedaça/ No balancê, balancê”, dizem os versos contagiantes da canção. Braguinha voltava a reinar no Carnaval brasileiro, graças aos agudos de Gal.
“Índia” (guarânia, 1952) – versão de José Fortuna
O LP “Índia”, de 1973, teve a capa, focada na parte de baixo do biquíni de Gal Costa, vetada pela ditadura. Para sair, o disco precisou ser vendido em plástico opaco, solução encontrada pelo compositor Roberto Menescal, então diretor artístico da gravadora Philips. “A censura à capa de ‘Índia’ não a afetou negativamente. Na verdade, impulsionou as vendas do disco e gerou bastante burburinho em torno da obra. O que afetou os rumos de Gal de maneira mais decisiva foi a recepção irregular ao disco subsequente, ‘Cantar’, de 1974”, conta Renato Contente, autor do livro “Não Se Assuste Pessoa! – As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar”. A faixa-título “Índia” era uma guarânia de 1952, cuja versão, de José Fortuna, Gal Costa regravou.
“Namorinho de Portão” (tropicalista, 1968) – Tom Zé
Lançada por Tom Zé em “Grande Liquidação”, primeiro álbum do autor, “Namorinho de Portão” se vale de uma abertura incidental da música de domínio público “Cai, Cai, Balão”, para, em seguida, incluir outros elementos caros à Tropicália, como a mistura sonora e a fluidez discursiva. “Namorinho de portão/ Biscoito, café/ Meu priminho, meu irmão/ Conheço essa onda/ Vou saltar da canoa”. A música foi regravada com grande sucesso por Gal Costa, no conceituado álbum que trazia, ainda, “Não Identificado” e “Baby”. A versão de Tom Zé data do mesmo ano em que veio ao mundo o fundamental álbum “Panis et Circenses”, que definiu as diretrizes da Tropicália que mudou o país.
“Divino Maravilhoso” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso e Gilberto Gil
A discípula de João Gilberto surpreende ao aparecer no IV Festival da Música Popular Brasileira da TV Record mais próxima de Janis Joplin do que do papa da bossa nova. Gal Costa foi quem lançou, em 1968, essa parceria de Caetano Veloso e Gilberto Gil que fincou de vez a bandeira tropicalista em terras brasileiras: “Divino Maravilhoso”. “Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino, maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a forte”. Politizada, a canção ganhou versões da nova geração nas vozes de Iza, Almério, Renegado, além de Ney Matogrosso e Elza Soares.
“Baby” (tropicalista, 1969) – Caetano Veloso
A música tropicalista “Baby” foi o primeiro sucesso, espécie de cartão de apresentação da cantora para o grande público. Caetano Veloso fez a pedido de Bethânia, mas como ela não queria estar vinculada à Tropicália, coube a Gal gravar para o disco-manifesto do movimento, “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968). A gravação também foi incluída no primeiro disco solo da cantora, “Gal Costa”, de 1969. O arranjo ficou a cargo de Rogério Duprat. Para completar, Caetano também participava da faixa, citando em contracanto o final de “Diana”, balada de Paul Anka que fizera sucesso no Brasil em 1958. Um hit!
“Não Identificado” (tropicalista, 1969) – Caetano Veloso
O arranjo de Rogério Duprat já vale a audição. “Não Identificado” foi lançada por Gal Costa em 1969, ainda sob a estética tropicalista. A letra não deixa por menos, e cita o espaço sideral e disco-voador, aliados a iê-iê-iê e Carnaval. “Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção singela, brasileira/ Para lançar depois do Carnaval...”. A gravação foi resgatada recentemente como música de abertura do festejado filme de Kleber Mendonça Filho, “Bacurau”, estrelado por Sônia Braga e Bárbara Colen. “Não Identificado” ganhou versões do próprio Caetano, de Maria Bethânia, Paulo Ricardo e de Ayrton Montarroyos, em 2021.
“Meu Nome É Gal” (rock, 1969) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Gal Costa é a única cantora que ganhou de Roberto e Erasmo Carlos uma música em sua homenagem. “Meu Nome É Gal” foi lançada no LP de 1969, com uma arte pra lá de psicodélica na capa que se repete nos arranjos. Lanny Gordin e Jards Macalé participam do disco, assim como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Vale incluir a regravação da mesma canção no álbum (e show) “Gal Tropical”. O duelo dos agudos mais bonitos do país com a guitarra de Robertinho de Recife, que acontecia no fim do show, é histórico. “Gal Tropical” passou pelo palco do Palácio das Artes, porém com Victor Biglione na guitarra.
“London, London” (balada, 1970) – Caetano Veloso
Já com Caetano e Gil exilados em Londres, Gal assume o papel de a grande porta-voz dos compositores. E foi justamente ela que lançou uma das canções mais bonitas (e tristes) que Caetano compôs, em inglês, durante o exilio. “London, London” foi lançada no disco “Legal”, de 1970. De acordo com Renato Contente, autor do livro “Não Se Assuste Pessoa! – As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar”, a baiana “perdeu o chão, afetiva e profissionalmente”, com as detenções e a partida de Caetano e Gil para Londres. “Ela ficou no Brasil, representando a resistência dos amigos”, analisa.
“Vapor Barato” (canção, 1971) – Wally Salomão e Jards Macalé
A parceria de Wally Salomão e Jards Macalé foi gravada primeiramente em estúdio, num compacto duplo de Gal lançado em 1971, que incluía “Zoilógico”, “Sua Estupidez” e “Você Não Entende Nada”. Mas “Vapor Barato” só ganhou grande repercussão quando foi incluída no repertório de “FA-TAL: Gal a Todo Vapor”. Anos depois, quando a música foi incluída na trilha do filme “Terra Estrangeira” (1995), passou a ser conhecida do grande público, voltou a fazer sucesso e chegou a ser regravada – também com grande sucesso – pelo grupo O Rappa. O título é uma menção dos loucos compositores ao uso da maconha.
“Pérola Negra” (MPB, 1971) – Luiz Melodia
Luiz Melodia compôs “Pérola Negra” em 1969, quando tinha 18 anos, e a batizou de “My Black”. Descoberto no bairro do Estácio pelos poetas Torquato Neto e Wally Salomão, recebeu a sugestão de Wally de mudar o nome da música para “Pérola Negra”, que era o “nome de guerra” de uma travesti que Wally conhecia. Foi também Wally quem levou a música para Gal Costa lançar em 1971, no show “FA-TAL: Gal a Todo Vapor”, tornando-se a primeira mulher a cantar, com sucesso de dimensões nacionais, a palavra “sexo” na música brasileira: “Tente entender tudo mais sobre o sexo”, sugeria o refrão da canção.
“Barato Total” (MPB, 1974) – Gilberto Gil
A composição de Gilberto Gil foi faixa de abertura de um álbum que não foi bem recebido na época pelos fãs mais ortodoxos de Gal Costa. “Cantar” foi uma espécie de retomada da Gal discípula de João Gilberto, muito distante da cantora engajada de anos anteriores. Além da produção de Caetano, o disco tinha na ficha técnica João Donato como autor dos arranjos sofisticados. É da lavra do compositor acreano dois dos mais belos momentos do disco: “Até Quem Sabe” e “Flor de Maracujá”. Com o tempo, “Cantar” se tornou um dos álbuns mais cultuados da carreira de Gal, e “Barato Total” se consagrou um hit.
“Modinha para Gabriela” (modinha, 1975) – Dorival Caymmi
Com a recepção fria a “Cantar”, Gal ficou dois anos sem gravar. A situação só iria mudar quando ela foi convidada para ser a intérprete da música de abertura da novela “Gabriela”, da Rede Globo, estrelada por Sonia Braga. O tema musical era uma composição de Dorival Caymmi: “Modinha para Gabriela”. O grande sucesso da música nas rádios levou a cantora a voltar aos estúdios, desta vez gravando uma espécie de songbook com músicas de Caymmi: “Gal Canta Caymmi”. Na regravação da novela “Gabriela”, já em 2012, com Juliana Paes no papel principal, o registro de Gal foi novamente colocado em rotação.
“Folhetim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
Composta para a “Ópera do Malandro”, a famosa “Folhetim” é uma das muitas músicas que sobreviveram ao espetáculo de Chico Buarque. Interpretada por Gal Costa no ano de 1978, na companhia de Wagner Tiso ao piano, Perinho Albuquerque, autor do arranjo, Jorginho Ferreira da Silva no saxofone, e outros músicos de peso, a canção narra a trajetória simples e peculiar de uma prostituta, com uma melodia ao mesmo tempo suave e incisiva, como requer a letra. “Se acaso me quiseres/Sou dessas mulheres/Que só dizem sim”; “Mas na manhã seguinte/Não conta até vinte/Te afastas de mim”, dizem alguns trechos. A música também foi gravada pelo próprio Chico Buarque e por Nara Leão, em outra sublime interpretação que valoriza cada palavra dita pela personagem.
“Bloco do Prazer” (frevo, 1979) – Fausto Nilo e Moraes Moreira
O compositor Fausto Nilo conheceu os integrantes do chamado “Pessoal do Ceará” ainda na década de 1970, e, desde então, passou a ser gravado por cantores como Fagner e Belchior, e, mais tarde, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Geraldo Azevedo, entre outros. No ano de 1979, o Trio Elétrico Dodô e Osmar, banda criada pelos inventores do trio elétrico na Bahia, lançou no Carnaval a música “Bloco do Prazer”, parceria de Nilo com o novo baiano Moraes Moreira. O frevo, em ritmo acelerado, é uma conclamação desenfreada à alegria e à liberdade. Gravada por Nara Leão, em 1981, tornou-se sucesso nacional na voz de Gal Costa, um ano depois, já na folia de 1982.
“Festa do Interior” (frevo, 1981) – Abel Silva e Moraes Moreira
Após décadas, as festas juninas voltaram a ser tema de uma canção popular de sucesso no Brasil em 1981. Composta por Moraes Moreira e Abel Silva em ritmo de frevo, “Festa do Interior” foi lançada por Gal Costa. Com arranjo de Lincoln Olivetti integra “Fantasia”, um dos álbuns mais exitosos da carreira da cantora. A música não apenas puxou as vendagens, até então a maior de Gal, como foi a mais tocada no Carnaval. Curiosamente, o repertório de “Fantasia” vinha de um show de Gal em que a crítica foi implacável. Segundo a cantora, problemas técnicos foram determinantes para o fiasco daquela noite de estreia.
“Chuva de Prata” (balada, 1983) – Ed Wilson e Ronaldo Bastos
Depois de mais de duas décadas na gravadora Polygram, Gal Costa assina com a então RCA. É pela nova gravadora que lança “Profana” (1984), onde abre espaço para músicas de apelo mais popular. “Chuva de Prata” é o grande sucesso do disco, junto com uma versão para uma música de Stevie Wonder, “Lately”, que, na letra em português de Ronaldo Bastos, virou “Nada Mais”. Também de Ronaldo Bastos, com Ed Wilson, é o sucesso “Chuva de Prata”, que mereceu as regravações de Paula Fernandes, Sandy e do grupo Roupa Nova. Porém, a primeira gravação foi feita em 1983, pelo tecladista Lafayette.
“Sorte” (MPB, 1985) – Celso Fonseca e Ronaldo Bastos
Violonista habituado a trabalhar com nomes de peso da MPB, como Gilberto Gil e Marisa Monte, o carioca Celso Fonseca compôs, em 1985, uma das pérolas do seu repertório. “Sorte” ganhou letra do poeta Ronaldo Bastos antes de receber as vozes de Gal Costa e Caetano Veloso, no disco “Bem Bom”, lançado pela baiana, e se transformou em sucesso imediato. A suavidade da letra e da melodia logo conquistou os ouvintes, e mereceu uma regravação de Ney Matogrosso. “Tudo de bom que você me fizer/ Faz minha rima ficar mais cara/ O que você faz me ajuda a cantar/ Põe um sorriso na minha cara...”, diz.
“Brasil” (rock, 1988) – Cazuza e George Israel
Bem ao estilo de Cazuza, a música “Brasil”, parceria com George Israel, apresenta versos tão sintéticos quanto rascantes, um verdadeiro nocaute poético aos que se apoderavam do país em benefício próprio. “Brasil, mostra a tua cara!/ Quero ver quem paga/ Pra gente ficar assim!/ Brasil, qual é o teu negócio?/ O nome do teu sócio?/ Confia em mim”. Após enumerar uma série de abusos e privações sofridas pela população brasileira, Cazuza deixa claro que o protesto e a indignação são, na verdade, uma declaração de amor. Lançada pelo compositor em seu álbum “Ideologia”, de 1988, ela foi regravada por Gal Costa no mesmo ano e virou tema de abertura da novela “Vale Tudo”.
“Cabelo” (samba-rock, 1989) – Jorge Ben Jor e Arnaldo Antunes
A aptidão para encontros musicais de Arnaldo Antunes começou a se expressar quando ele ainda integrava os Titãs. Em 1989, fazendo parte do grupo paulista, Arnaldo criou parceria com Jorge Ben Jor, que seria lançada no disco “Benjor”, de 1989. “Cabelo” foi um estouro imediato e logo chamou a atenção de Gal Costa, que a regravou no ano seguinte, no LP “Plural”.
Em 2010, Arnaldo e Jorge Ben Jor realizaram um inédito dueto da canção, no álbum “Ao Vivo Lá Em Casa”, que gerou CD e DVD. Com versos aparentemente simples, a letra abrange questões amplas, que vão do racismo ao existencialismo. “Cabelo, cabeleira, cabeluda, descabelada/ Quem disse que cabelo não sente/ Quem disse que cabelo não gosta de pente/ Cabelo quando cresce é tempo/ Cabelo embaraçado é vento”, conceitua o samba-rock.
“Quando Você Olha pra Ela” (MPB, 2015) – Mallu Magalhães
Apontada como espécie de precursora da chamada “MPB Fofa”, Mallu Magalhães, a exemplo de Anavitória e Ana Vilela, primeiro chamou a atenção do público com vídeos divulgados na internet. Hoje, ela acumula quatro álbuns solo e uma carreira consolidada no mercado fonográfico. “Sim, vejo uma leveza na minha composição, uma ausência de agressividade e vejo que trabalho, geralmente, com um ânimo mais contemplativo, uma intenção de compreender e ver beleza na vida, com alguma melancolia”, conta Mallu, que, em 2015, garantiu o hit “Quando Você Olha pra Ela” a Gal Costa, no CD “Estratosférica”.