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‘Revolta do Vinagre': uso do produto contra gás lacrimogêneo marcou as jornadas de junho

Há 10 anos, manifestantes seguiram recomendação de levar vinagre para os protestos

Repressão policial com uso de gás lacrimogêneo e bomba de efeito moral marcou manifestações de junho de 2013

Faz 10 anos que manifestantes foram às ruas em mais de 500 cidades de todo o Brasil. A maioria dos atos ocorreu em junho de 2013 e teve a participação de milhões de brasileiros insatisfeitos, que criticavam diferentes aspectos da ação governamental: do aumento das tarifas de transporte públicos às falhas da democracia representativa, passando pela violência policial, pela falta de investimentos em serviços públicos e outros.

Com tantos grupos nas ruas para protestar, a polícia usava armas não letais de dispersão, como gás lacrimogêneo, spray de pimenta, balas de borracha e bombas de efeito moral, para conter os manifestantes. À época, uma das orientações era usar vinagre para combater os efeitos do gás lacrimogêneo — e muitos participantes dos atos foram presos simplesmente porque carregavam uma garrafa do líquido.

Será que o risco era válido? O objetivo era evitar a reação irritante provocada pelas substâncias que compõem o gás, mas, segundo Bruno Araújo, químico formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e perito criminal da Polícia Civil de Minas Gerais, é pouco provável que o vinagre tenha capacidade de neutralizar a ação do gás lacrimogêneo. “As pesquisas são pouco claras em relação à eficiência do vinagre para esse fim”, aponta ele.

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Araújo diz que, em nível molecular, não deveria haver neutralização. “São substâncias de naturezas químicas diferentes. De modo geral, na Química, para um elemento remover outro de uma superfície, eles devem ter naturezas parecidas. Dizemos que um semelhante dissolve um semelhante”, explica.

Isso porque, enquanto os compostos usados no gás lacrimogêneo são do grupo dos haletos orgânicos — ou seja, substâncias que têm halogênio ligado a uma cadeia carbônica —, o vinagre é uma solução aquosa de ácido acético de cerca de 4% em volume. “Então, eu diria que essa suposta propriedade do vinagre é um mito”, avalia o especialista. “Talvez essa lenda venha da crença de que o vinagre pode ser usado para tudo.”

A melhor forma de evitar os efeitos do gás lacrimogêneo — irritação das vias aéreas e dos olhos, que leva à eliminação de lágrimas — é usar máscara com filtro de carvão ativado. “Carvão ativado é vendido em lojas de ferragens. Basta envolvê-lo com um pano e usar na região do nariz e da boca. O carvão ativado tem a propriedade de absorver substâncias voláteis, principalmente gases, e isso impediria a entrada delas no sistema respiratório.”

Qualquer uma das armas não letais de dispersão usadas pela polícia militar pode causar lesões graves, alergias severas e, em casos extremos, até levar à morte. “Existe um movimento mundial para proibir o uso do gás lacrimogêneo para conter manifestações. Eles querem classificá-lo como arma química”, aponta Araújo. “É um composto proibido em guerras. Um contexto de manifestação é pior que o de uma guerra? Existe uma contradição aí.”

Um dos casos mais dramáticos envolvendo gás lacrimogêneo é de maio de 2022: Genivaldo de Jesus Santos foi trancado em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Umbaúba, no interior de Sergipe, com o composto. “O gás se expande naquele ambiente fechado e expulsa o oxigênio. A vítima, então, morre por asfixia”, explica Araújo.

Efeitos no organismo

O perito lembra que todos esses recursos devem ser usados de acordo com regras específicas. As balas de borracha, por exemplo, devem ser direcionadas apenas às pernas — o atingido sente dor, mas não corre risco de morrer — e lançadas a pelo menos 30 metros de distância, mas nem sempre elas são usadas assim. “O objetivo é apenas parar os manifestantes.”

Feitos de elastômetro, esses projéteis são muito leves. “Mesmo assim, quando atirados em velocidade muito alta, recebem uma carga muito alta de energia e a transferem para o objeto que tocam”, descreve. “Atirar a 5 metros de distância na cabeça de um indivíduo… Há vários casos de lesões sérias — como danos irreversíveis à visão em quem foi atingido nos olhos, por exemplo.”

A depender de onde a bala de borracha pega, pode afetar uma estrutura vital. “Se as regras para uso da munição não letal não forem respeitadas, podem ocorrer fatalidades.” Um dos locais mais críticos é a nuca. “Se pegar uma região bulbar — logo abaixo do crânio —, a morte é instantânea. Essa é uma área vital, que controla o sistema cardiorrespiratório”, informa o perito. “O mesmo pode ocorrer se houver rompimento de órgãos internos, como o baço.”

Já a bomba de efeito moral pode ser considerada menos agressiva ao organismo. “São artefatos usados para produzir muita luz e muito barulho. Esse é o efeito moral deles”, explica. “Quando se está perto de algo que explode — mesmo que não seja uma explosão efetivamente —, há um grande susto com a luz e o barulho. Por isso, funciona para parar os manifestantes.”

Algumas delas são, ainda, fumígenas, ou seja, produzem fumaça além da luz e do barulho — essa fumaça é outro componente que ajuda na dispersão. “Elas não podem ser usadas em ambientes fechados, pois levam à asfixia. A fumaça dessas bombas não é tóxica, mas ela pode expulsar o oxigênio do ambiente e essa falta de oxigênio leva à asfixia.” É semelhante ao caso ocorrido com gás lacrimogêneo em Sergipe.

O gás de pimenta — ou spray de pimenta —, por sua vez, tem capsaicina na composição. Essa substância é responsável pelo ardor provocado pelo artefato nos olhos e na pele. “É o equivalente a pegar molho de pimenta e pingar nos olhos. A capsaicina é extraída da semente da pimenta.” Em ambientes fechados, há o mesmo risco de asfixia.

Indivíduos alérgicos a substâncias presentes em qualquer um desses compostos podem apresentar reações graves. “Nem sempre sabemos que somos alérgicos. Não é possível prever uma alergia: só se descobre quando se é exposto àquela substância e o organismo reage. Se o indivíduo for alérgico a uma dessas substâncias, pode ter um edema de glote [quando a glote incha e, com isso, obstrui a passagem de ar e causa insuficiência respiratória] e morrer asfixiado, por exemplo.”

Para quem tiver contato com essas substâncias, o especialista alerta sobre como agir. “É melhor não usar receitas caseiras nesses casos. No máximo, deve-se tirar a roupa, que estará contaminada, lavar o corpo com água e sabão e procurar um hospital. Isso é preferível a usar algo caseiro que possa piorar a condição.”