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Dia das Mães: de volta às origens, a história da mãe e da avó do rapper Djonga

Rosângela Pereira Marques, de 63, e Maria Eni Viana, de 87, participam da edição especial do Observatório Feminino

Na foto, Maria Eni Viana e Rosângela Pereira Marques

Neste Dia das Mães, o Observatório Feminino conversou com Maria Eni Viana, de 87 anos, e Rosângela Pereira Marques, de 63. Essas mulheres devotas são avó e mãe, respectivamente, do rapper belo-horizontino Djonga. Ovacionado por onde passa, o artista de 28 anos dispensa apresentações.

Dona Maria, senhora dos cabelos grisalhos que sempre leva um terço nas mãos, e Rosângela, mulher preta retinta com sorriso largo e brilho nos olhos estão sempre presentes — nas letras das músicas, no palco ou na plateia. A Itatiaia foi até o bairro São Lucas, na região Leste de Belo Horizonte, para conhecer as histórias de como elas foram atravessadas pela maternidade e as origens da família criada no capital mineira.

‘Onde mães fortes e generosas se criaram’

Dona Maria nasceu em 22 de dezembro de 1935, na cidade de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, no interior de Minas. Na terra conhecida pelas altas temperaturas, ela conta que teve uma infância simples. “Quando criança, ia para a missa e ao cemitério. Minha mãe tinha devoção de ir ao cemitério”. Foi na cidade natal que fez o curso de costura e, também, conheceu o alfaiate Silas por quem se apaixonou. Em 1952, eles se casaram e tiveram cinco filhos: as três meninas Rosângela, Zélia e Rosilda, e dois meninos, que faleceram.

O rumo da família mudou, em direção a Belo Horizonte, quando Silas contraiu Chagas — doença causada por um parasita e transmitida, principalmente, pelo inseto barbeiro. Como em Teófilo Otoni não havia tratamento, era necessário viajar mais de 440 quilômetros até BH. “Eu ficava para baixo e para cima com ele. As meninas ficavam com minha tia e minhas primas. Então, combinamos: alugaremos um barracão em BH e ficaremos aqui até o tratamento terminar. Depois, íamos embora. Mas Deus não quis”, contou. Isso porque, 18 dias depois da chegada à capital, ainda em ascensão, o companheiro Silas morreu.

Dona Maria tinha apenas 26 anos quando se tornou mãe solo de três meninas. A tragédia fez com que ela voltasse para a cidade natal, seguindo a recomendação do pai, que dizia: “jovem e viúva na capital, é perdição”.

Mas, não demorou muito para Maria Eni retornar a Belo Horizonte: em três meses, a jovem costureira recebeu a encomenda de um enxoval para uma festa de 15 anos. Entregue este trabalho, resolveu permanecer na capital. Dona Maria relembra desse período como tempos difíceis. “Mas a gente sempre acha um anjo para guardar”, lembrou.

Um casal, que morava na íngreme rua Tenente Garro, entre os bairros Santa Efigênia e São Lucas, acolheu a jovem e suas filhas e, para lá, a família se mudou. “Quando eu chegava, eles sempre estavam no muro me esperando para ver com quem eu estava. E eu sempre os obedecia como meu pai e minha mãe”, contou.

Apesar de muito jovem, os relacionamentos amorosos ficaram de lado. Ela abdicou das novas aventuras. “Eu tinha muito juízo e tinha medo de ficar com alguém. Tinha receio que esse alguém se aproveitassem das minhas filhas. Eu pensava muito nelas. Até tive oportunidades, várias. Mas eu preferia elas três”, conta.

‘O que é dos outro não é meu, mas o que é meu tá aí pros outro’

Além das três, dona Maria ganhou filhos e filhas espalhados pelo ‘Pau Comeu’, vila que compõe atualmente o Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do Brasil. Rosângela descreve a mãe como uma mulher caridosa. Se alguém morria no alto do morro, era Dona Maria que se propunha a pedir o dinheiro aos vizinhos para um velório minimamente digno e para arcar com as passagens de ônibus dos familiares que viriam para se despedir do ente querido.

Em casa, Dona Maria era pulso firme. Rosângela é a caçula e lembra do rigor da mãe na infância. “Minha mãe não deixava a gente sair. Era aquela coisa: medo por ser mulher. Em 1963, o tempo era diferente do de hoje. Ela ficava preocupada. Então, a gente só ia para escola e para igreja”, lembra. A missa de domingo sempre foi (e continua sendo) “sagrada” para a família.

Naquela época, a rua de casa não era asfaltada e Rosângela lembra de quando brincava de “finca”. Para quem não sabe, a diversão se resume em desenhar dois triângulos no chão onde as crianças tentavam fincar objetos de ponta no chão, na direção do triângulo do adversário. “Nossa infância foi gostosa”, rememora.

O “rolê” na adolescência era sair para ouvir música. “Às vezes, na minha casa. Outras vezes, na casa de amigas. Esses eram os nossos passeios”, disse. Ela conta que gostava das músicas de John Travolta, que fazia muito sucesso com o filme “Grease — Nos Tempos da Brilhantina” (1978) e de Elvis Presley. “Ah, eu também era apaixonada por Michael Jackson”, confessa.

Do mesmo muro baixo que os pais adotivos observavam Dona Maria chegar em casa do trabalho, as três meninas viam a garotada descendo a rua com o som. “Se a gente fizesse algo que nossa mãe não gostasse, ela não deixava a gente ir. Ela não abria mão”, lembra.

Namorar? Não podia. Quando alguma das filhas surgia com um paquerinha próximo de casa, Dona Maria riscava um facão no chão — na tentativa, quase certa, de intimidar os meninos. “Não tinha homem em casa, mas tinha facão”, contou as gargalhadas. Com o mesmo facão, ela acabou com um noivado da irmã, que estava sendo enganada por um militar “de coité e tudo”.

Aos 30, Rosângela se casou com Ronaldo, conhecido com Nado, e, aos 34, engravidou. “Foi programado. Isso porque quando eu quis ter filhos, descobri que tinha endometriose. Então, tive que fazer o tratamento. Por coincidência, fui a Teófilo Otoni com o meu marido, para apresentar ele à minha família, e lá eu engravidei”, lembra.

‘Junho de 94'

Em 4 de junho 1994, nasceu o primeiro filho: Gustavo Pereira Marques. Hoje, aos 28, conhecido por muitos - muitos mesmo - como Djonga. Não demorou muito, veio a segunda filha: Renata, que se formou em administração de empresas. “Eu queria engravidar de uma vez só. Engravidar é muito bom, mas você fica limitada a fazer algumas coisas. Apesar disso, eu trabalhei o tempo inteiro”, contou.

Quando Gustavo e Renata eram pequenos, Dona Maria era quem ficava com eles. “Só depois que os meninos cresceram um pouco eu coloquei na creche. Eu pensava: depois que começassem a falar, se alguém maltratasse, eles saberiam contar”.

Nessa época, ela morava no bairro Santa Amélia, na região da Pampulha e trabalhava no setor de contabilidade da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O serviço do marido ficava em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Foi com muito trabalho dos pais — sempre presentes — e com o apoio da avó que Gustavo e Renata cresceram. Educação sempre foi prioridade na família.

Pode ser um pouco difícil de imaginar, mas Rosângela conta que, ao se formar no Ensino Médio, Gustavo quis ser Policial Federal — como o tio. Por isso, se matriculou em um cursinho para tentar Direito. Mas foi no cursinho que ele se apaixonou pelas aulas de um professor de história e decidiu mudar os rumos da profissão.

“Ele passou em uma faculdade particular e ficou como excedente na UFMG. Ele dizia que educação deveria ser um direito garantido pelo Estado, que não tinha de ter que pagar para estudar”, lembrou. Aos 17 anos, foi aprovado na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e se mudou para Mariana, na região Central de Minas. Não foi fácil para Rosângela ver o filho sair de casa, mas os tempos eram outros.

Gustavo participou de saraus de poesia e começou a rimar. Quando estava no último período, quis trancar os estudos para investir na carreira de artista. “Ele chorava, queria deixar a faculdade. Eu e o pai dele conversamos. Ficamos com medo, mas demos a bença e seja o que Deus quiser. Dizemos: você tem um ano para fazer dar certo. Se não, voltará a estudar. E ele começou dando certo”.

‘Oooh, mãe! Eles me pedem foto’

Há seis anos, a vida de Gustavo e da família mudou. As origens se tornaram tema das músicas. Na canção “Bença”, do álbum Ladrão (2019), ele conta a luta de dona Maria. “Vó, como cê conseguiu criar três mulheres sozinha/ Na época que mulher não valia nada?/ Menina na cidade grande/ No susto, viúva/ E daquela cor que só serve pra ser abusada/ Você não costurou só roupa, né?/ Teve que costurar um mundo de trauma, abdicação, luta”, começa a música. “Ele canta minha vida todinha”, disse dona Maria ao se referir à faixa.

As conversas de mãe e filho também viraram letra. Rosângela recorda do dia que contou a ele sobre os reflexos da fama no bairro onde moram. “Vizinhos, amigos, conhecidos, diziam ser ‘primo’ dele. Mas não eram primo”, lembra. Desse papo, surgiu “A Música da Mãe” (2018).

“Quem imaginava que o filho ia virar isso aqui/ Minha mãe me disse que surge parente de todo lugar/ Até os inimigo da época crime, treta, time, seita, vê e aceita/ Que o rei é quem tá sentado no trono e acima do rei só sua coroa (E Deus)”, canta Djonga.

Aposentada do serviço público, Rosângela entrou para os business e trabalha ao lado do filho na produtora criada por Djonga, A Quadrilha. Renata, irmã do rapper, também ajuda a mãe a tocar o negócio.

‘O mundo é nosso’

Gustavo, Dona Maria e Rosângela, Renata e Nado não passam muito tempo separados. A mãe acompanha o filho em parte das viagens. Na última semana, esteve no Rio de Janeiro com os netos — Jorge, de 7, e Yolanda, de 3 - enquanto o rapper passava uma temporada na cidade carioca a trabalho. “Ele estava com saudade dos filhos, fomos para lá”.

E dona Maria Eni? Agora ela aproveita bem a vida. “No momento, eu sinto que estou vivendo”. Gosta de tomar uma cerveja preta, cozinhar feijoada “gorda” e ir às apresentações do neto. “Eu só perdi três shows em BH, desde que ele começou a cantar”, disse, com orgulho.

Em um dos episódios, ela lembra que saiu do hospital onde ficou internada por 20 dias. “E tinha um show dele no Mineirão. Você acredita que eu fui?”. A volta para a casa depois das apresentações, às vezes, ocorre já com o sol raiando. Quando questionada sobre como ter tanta energia com quase 90 anos, ela riu: ‘só deus sabe. Deus e os orixás”.

*com Alessandra Mendes e Naice Dias

Formou-se em jornalismo pela PUC Minas e trabalhou como repórter do caderno de Gerais do jornal Estado de Minas. Na Itatiaia, cobre principalmente Cidades, Brasil e Mundo.