Eles têm formatos de itens de material escolar, como canetas, pen drives e corretivos, e são vendidos como inofensivos. No entanto, contêm nicotina e diversas outras substâncias cancerígenas, em quantidades maiores que um cigarro “comum”. Para órgãos de saúde, a estratégia da indústria tem dado certo, já que o uso de cigarros eletrônicos por adolescentes aumentou no país, conforme estudo da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A pesquisa aponta que ao menos 32,6% dos adolescentes, entre 16 e 17 anos, já experimentaram cigarro alguma vez na vida. Se analisado jovens do sexo masculino, o número sobe para 35%. Entre os adolescentes ouvidos, 16,8% optaram pelo uso de cigarro eletrônico.
A médica Liz Almeida, responsável pela Coordenação de Prevenção e Vigilância (Conprev) do Instituto Nacional de Câncer (INCA), explica que a maioria das pessoas que aderiu ao cigarro eletrônico nunca tinha fumado. “Particularmente crianças e adolescentes. E esse é o grande estrago do produto: em todo o mundo, quem mais está usando são pessoas que nunca tinham colocado um cigarro na boca”, destaca.
Com formatos estratégicos e essências chamativas, os objetos tentam passar como inofensivos. “Muitos pais descobrem tarde. Nos Estados Unidos, foi oferecido tratamento para crianças e adolescentes, e, em poucas horas, já havia milhares de pessoas inscritas (com problemas pulmonares). Normalmente, a gente trata adultos que já fumam há muitos anos. (Esses danos) em crianças e adolescentes é algo novo”.
A dependência em nicotina - uma das drogas mais difíceis de se livrar- provoca diversos tipos de câncer, enfisema pulmonar, doenças cardiovasculares e respiratórias. As doenças causadas pelo uso de cigarros são conhecidas há décadas, e para “driblar” restrições de publicidade e “rejuvenescer o produto”, fabricantes conquistam adolescentes com dispositivos que se passam como inofensivos, aponta o coordenador do Ambulatório de Dependência Química e psiquiatra do Hospital das Clínicas da UFMG, Frederico Garcia.
“O que a gente acaba vendo nos adolescentes é um pouco isso, porque tem a ‘moda’ de ficar com o produto na boca. Existe toda uma valorização de um produto que causa malefícios para a saúde de forma muito clara, que infelizmente tem sido usado cada vez mais cedo e traz problemas”, disse Garcia, que observou que alguns adultos têm consumido nicotina em um nível tóxico.
Como surgiu o cigarro eletrônico?
A médica Liz Almeida explica que os dispositivos mais recentes foram desenvolvidos por um chinês no início dos anos 2000 para ajudar a conter o vício de forma menos lesiva. No entanto, o contrário aconteceu.
“Os dispositivos eletrônicos para fumar, que é o termo mais correto, foram inicialmente criados em 1963, por um americano, porém esse modelo não tinha nicotina e não pegou. Depois disso, a indústria do tabaco criou modelos que também não deram muito certo na praça. Finalmente, em 2003, um chinês criou esse modelo que vem se difundindo”, explica.
Os dispositivos começaram a ser vendidos sem pré-testes para verificar efeitos colaterais em populações humanas. “A nicotina tem o papel de acelerar o sistema de recompensa cerebral. Ela provoca uma rápida sensação de bem-estar, mas também acelera o sistema circulatório, podendo levar a um quadro de hipertensão, que é um fator de risco para infarto”.
Nos países onde os “vapes” e “pods” são vendidos livremente, a comunidade médica começa a reportar aumento de internações por síndrome respiratória aguda grave. “Nos Estados Unidos, já levou à internação de mais de 2 mil pessoas e matou 68”, afirma a médica.
Essências, nicotina e produtos desconhecidos
Além do formato para não parecer cigarro, os vapes ganham essências - geralmente doces - e vapor de água para parecer inofensivos ou menos agressivos. Entretanto, além da nicotina, são adicionadas centenas de substâncias em quantidades desconhecidas, e não há regulamentação para sua produção e importação.
“As empresas dizem colocar apenas água e glicerina de essências, só que aquecidas formam reações químicas que podem ser tóxicas e cancerígenas. A gente ainda não tem uma noção clara do impacto a longo prazo. A gente sabe que a aspiração de fumaça pode causar fibrose, enfisema, câncer, mas a gente ainda não tem um distanciamento epidemiológico suficiente para dizer o tamanho desse impacto”, explica Garcia.
Liz Almeida detalha que muitas dessas substâncias são aditivos alimentares que foram feitos para o sistema digestivo e não para o respiratório. “Além disso, há metais pesados. No caso do câncer, a doença pode levar 20, 30 anos para se desenvolver, então não terão todos os efeitos percebidos agora. Porém, os sintomas respiratórios já estão bem documentados”.
Tratamentos pelo SUS
A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), por meio da Secretaria Municipal de Saúde, explicou à Itatiaia que os 152 Centros de Saúde da capital possuem tratamento gratuito pelo Programa de Controle do Tabagismo, com oferta, inclusive, de medicamentos. Para receber o tratamento, é necessário procurar o Centro de sua região e participar das reuniões.
“O tratamento começa com palestra sobre o programa e segue com avaliação clínica, além de sessões de terapia individuais ou em grupo. Nas sessões em grupo, a abordagem intensiva é realizada em grupos de 10 a 15 participantes, coordenados por profissionais de saúde de nível superior. São quatro sessões semanais durante o primeiro mês, seguidas de duas sessões quinzenais e uma sessão mensal do terceiro ao sexto mês. Em casos específicos, o tratamento pode ser realizado com a abordagem individual”, destacou a pasta em nota.
De acordo com a secretaria, “o tratamento do tabagista contempla estratégias para enfrentar a dependência química, comportamental e psicológica. A abordagem por meio de grupos é prioritária, contudo, em alguns casos pode ser oferecido também de forma individual de acordo com a demanda do paciente e as possibilidades das equipes”.
De janeiro a agosto deste ano, 1.374 pessoas participaram do Programa de Controle do Tabagismo nos Centros de Saúde da capital.
O que diz a Anvisa
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), “não há informações que sustentem a autorização para a entrada destes produtos no mercado brasileiro”. Apesar disso, os produtos são vendidos em sites e pelas redes sociais. “A fiscalização de lojas físicas é responsabilidade das autoridades locais, município e estado”, explicou o órgão.
Já as denúncias podem ser feitas na própria vigilância sanitária do município. “A Anvisa realiza a fiscalização online de qualquer produto fumígeno, entretanto, esta não é uma atribuição exclusiva da Agência. Vigilâncias Sanitárias Estaduais e Municipais também podem fiscalizar qualquer tipo de irregularidade sanitária”.
O órgão ainda listou o motivo do dispositivo não ser autorizado no país:
Nenhum tipo de DEF é útil para a cessação ou tratamento do tabagismo;
Os DEF causam dependência (presença da nicotina) e diversos riscos à saúde;
Redução da emissão de substâncias não significa redução de risco ou dano à saúde;
Ausência de estudos à médio e longo prazo dos impactos à saúde;
Iniciação de jovens ao tabagismo, com chances de 2 a 3x de iniciar o uso de produtos convencionais;
Há uma grande diversidade de produtos, o que torna impossível prever os riscos;
“Estudo realizado no Brasil demonstra que os usuários não têm uma percepção de risco correta sobre os produtos; se sentem atraídos pelos aditivos e não se acham fumantes”, concluiu o órgão.